sexta-feira, julho 11, 2008

Hayek para o século 21

Hayek para o século 21

AS MELHORES revistas são aquelas que nos obrigam a repensar. Lemos artigos, confrontamos sabedorias nossas. E depois reformulamos o conhecimento num processo invisível e contínuo. Creio que era essa a idéia que Hayek defendia ao falar da emergência e do florescimento da civilização ocidental: um processo epistemológico em que diferentes mentes interagem espontaneamente umas com as outras, sem interferência de um Estado central e centralista.
E se lembrei Hayek foi por causa de uma revista recentemente lançada no Brasil, um pequeno milagre de inteligência e bom gosto gráfico. A revista se chama "Dicta & Contradicta", tem periodicidade semestral (que pena) e procura ser uma espécie de "The New Criterion" em língua portuguesa.
Caso não saibam, a "The New Criterion" é a bíblia conservadora e liberal da intelligentsia nova-iorquina, e a "Dicta", na escolha e disposição dos temas (ensaios + perfis + artes + letras), emula, na perfeição, a irmã mais velha da Big Apple.
Talvez por isso o primeiro número, que conta, entre outros, com um ensaio notável de Luiz Felipe Pondé sobre o "Eclesiastes" (ensaio que me obrigará a reler "Herzog", de Saul Bellow, com outros olhos), inclui também texto de Roger Kimball, um dos fundadores da "The New Criterion", sobre Hayek, o austríaco nascido em 1899 e que acabaria por conhecer a fama internacional em 1944, com a publicação de "The Road to Serfdom".
Kimball acerta ao afirmar que "The Road to Serfdom" é, ainda hoje, um dos mais poderosos libelos a favor da liberdade individual e contra o planejamento econômico que seria dogma nas economias européias do pós-guerra.
Mas, lendo Kimball e relendo Hayek, não estou inteiramente seguro de que todos os pontos do austríaco mantenham, ainda hoje, validade e pertinência.
Para começar, não estou inteiramente certo de que a existência de um Estado social, capaz de garantir proteção e ajuda para os mais desfavorecidos, seja o primeiro passo para o "caminho da servidão" que Hayek denuncia no título da sua obra.
A Suécia ou a Dinamarca, para citar apenas dois exemplos em que o Estado participa generosamente nas economias internas, só por piada podem ser considerados Estados "totalitários", comparáveis à Alemanha nazista ou à União Soviética comunista.
E, para ficarmos dentro da família conservadora, as reformas sociais de Disraeli ou Salisbury na Inglaterra, longe de restringirem as liberdades individuais, foram uma condição para o seu exercício no século 20.
Por outro lado, relendo "The Road to Serfdom", questiono se, como escreve Hayek, a educação e a inteligência promovem necessariamente o pluralismo político anti-autoritário. A história do século 20, por vezes, aponta para o inverso: intelectuais sofisticados, como Sartre ou Heidegger, aderiram a programas autoritários. Para mentes irrecuperavelmente monistas, a diferença pode ser vista como um vício, não como uma virtude.
Apesar disso, "The Road to Serfdom" ainda é válido para o século 21. Começa por ser válido ao relembrar, de forma expressiva (e corajosa), as semelhanças teóricas e práticas entre o fascismo, o nacional-socialismo e o comunismo, três tiranias gêmeas de vocação revolucionária que, ao procurarem recriar o "homem novo", acabaram por degradar e destruir o "homem velho".
Mas Hayek é sobretudo útil ao relembrar que o Estado não deve ser um agente moral: uma entidade dotada de capacidade e poder para impor sobre terceiros uma única visão da vida.
Isso implica, segundo Hayek, um respeito pelo indivíduo e pela capacidade deste de perseguir os seus interesses. O Estado deve ser capaz de estabelecer as regras do jogo, mas não lhe cabe comandar o jogo, muito menos estabelecer o resultado final desse jogo.
Como afirma Kimball, na passagem mais relevante do texto que a "Dicta & Contradicta" oferece agora aos leitores brasileiros, Hayek entendeu, como Tocqueville antes dele, que o efeito mais perverso do "paternalismo de Estado" é de natureza psicológica.
Ao tratar os seres humanos como eternas crianças, o governo permite que os seres humanos vejam a eles próprios como crianças. A interiorização desse sentimento faz com que os indivíduos se sintam crescentemente dependentes, sem autonomia e, no limite, sem caráter nem dignidade próprios. E nenhum adulto amante da liberdade aceita viver num jardim de infância.

Texto de João Pereira Coutinho, na Folha de São Paulo, de 8 de julho de 2008.

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