quarta-feira, julho 09, 2008

Cuba: Dramas em tom de piada

Retrato oficial de Cuba 2 - Dramas em tom de piada
Os cubanos combatem as tristezas cotidianas com um humor corrosivo que às vezes aparece na televisão

Mauricio Vicent
Em Havana


A mil quilômetros de Havana, na cidade de Baracoa, o peixe que servem aos turistas no hotel El Castillo é congelado. O mesmo acontece em todos os restaurantes estatais do país, por isso a coisa não teria nada de estranho se não fosse por duas razões: para chegar a esta cidade no leste da ilha, a primeira fundada em Cuba por Diego de Velázquez, os peixes têm de passear 150 km desde Guantánamo e atravessar uma perigosa estrada de montanha chamada La Farola; a segunda é que Baracoa é uma fabulosa cidade litorânea de 40 mil habitantes e a pesca no local é excelente. Mas não há "mecanismos" para que os particulares possam fornecer nada diretamente aos hotéis e empresas do Estado. "Tudo é centralizado, e enquanto for assim todos continuaremos congelados", brinca um funcionário de espírito liberal.

Em Cuba, o drama e o humor negro se confundem. Na ilha existe uma polêmica lei que estabelece que quem emigra "definitivamente" do país perde o direito à casa e a todas as propriedades de que for titular. Mas o que acontece se quem emigra são sua filha e seus netos, e você fica? Isso aconteceu com Evaristo Ricardo Concepción, na cidade de Holguín, e quase lhe causou um infarto. Apesar de fazer três anos que morava com sua filha na casa, como esta estava em nome da "emigrante" foi confiscada em fevereiro de 2006 com todos os objetos em seu interior. Evaristo reclamou e ganhou a demanda. Devolveram-lhe a casa em julho, mas vazia. Reclamou outra vez. Em 15 de maio de 2007 devolveram o refrigerador e a televisão, e em 8 de agosto, um ventilador. Mas o restante, até dois meses atrás, nada. Isso foi publicado em abril pelo jornal "Juventude Rebelde" na seção "Aviso de recebimento".
Casos como este existem aos montes. Na mesma seção do mesmo jornal, no último domingo se informava sobre duas "situações" relacionadas ao grave problema da moradia, em um país que tem um déficit de um milhão de residências. A primeira se referia ao protesto de um grupo de moradores do município Arroyo de Naranjo, em Havana, pelo desamparo em que se encontram. Acontece que suas casas foram construídas por erro entre duas torres de alta tensão e, como a urbanização foi erguida "em um campo magnético perigoso para a saúde humana", nenhuma instituição se responsabiliza. "Os inquilinos não têm a propriedade de suas casas, nem, portanto, sua caderneta (de racionamento) de produtos alimentícios."

O segundo caso é ainda mais triste. Trata-se de moradores da cidade de San Juan y Martínez, em Pinar del Río, que começaram a construir seu próprio edifício em 1987. "Não puderam concluí-lo por urgências do território - alheias à sua vontade - até 2007; 22 anos depois!", exclama o "Juventude Rebelde". A coisa não acaba aí. "Incrivelmente, não entregarão as moradias enquanto não se construir uma fossa séptica." O artigo jornalístico, intitulado "Investimentos na louca", denunciava "as seqüelas que causam a improvisação, a indisciplina e o voluntarismo em processos de investimento relacionados a algo tão sério como a habitação".

As verdades mais duras se dizem brincando em Cuba. Meio de piada. E quando o riso é político e ainda por cima vaza de modo sistemático na ideologizada televisão estatal, é que o assunto é muito sério. No dia em que se fizer uma fotografia da Cuba atual, será preciso recuperar a série humorística "Deixe que eu te conto", que toda quarta-feira salpica a tela de situações delirantes, as mesmas produzidas pelo socialismo tropical. O normal no programa é ser pilantra e roubar do Estado, e por esse vaudeville desfilam dirigentes incapazes e personagens que buscam a vida fazendo difíceis equilíbrios, entre a censura e o prazer popular. O programa é transmitido pelo canal Cubavisión no horário de maior audiência e causa furor. Alguns cubanos gravam os capítulos e enviam as fitas de vídeo para seus parentes recém-emigrados para Miami, adeptos de suas irreverências. Uma de suas seções é ambientada em uma oficina estatal que realiza reparos de equipamentos eletrodomésticos, mas na verdade pouco se conserta porque quase nunca há peças de reposição.

Como em muitos estabelecimentos estatais, nessa oficina não há grande volume de trabalho. E como os salários não são suficientes cada um sobrevive como pode. Em um capítulo memorável, a secretária se dedica à manicure particular, isto é, faz unhas no horário de trabalho; o funcionário mais antigo cobra um imposto dos clientes que precisam usar o banheiro; e o mecânico se ocupa em brincar com as peças do único automóvel da empresa, a serviço do gerente. Ocorre que o motorista do dirigente faz de taxista privado com o carro do Estado e é descoberto pelos empregados. Ao ver-se ameaçado, o chefe impõe a paz com este argumento inapelável: "Aqui não acontece nada; nem eu vejo o que vocês fazem, nem vocês o que eu faço".

Censura na "zona de silêncio"

Dentro e fora de Cuba há quem se esforce para negar, mas algumas coisas importantes mudaram na ilha, principalmente a disposição à crítica e seu emprego sem complexos pelos criadores mais jovens. Uma mostra disso é "Zona de Silêncio", um documentário sobre a censura realizado por Karel Ducases como tese de graduação na faculdade de Comunicação Audiovisual do Instituto Superior de Arte. No filme aparecem figuras como os escritores Antón Arrufat e Pedro Juan Gutiérrez, o cineasta Fernando Pérez e o trovador Frank Delgado, e todos sem exceção falam sem edulcorantes sobre a existência da censura em seu país, antes e hoje. Arrufat conta sobre sua experiência com a censura "brutal" que o manteve 14 anos sem publicar um livro. Delgado, sobre a covardia dos censores que não se atrevem a lhe dizer na cara que suas canções estão proibidas. Ducases joga com o humor e o drama e intercala frases como a seguinte de José Martí: "A mordaça que põe em boca alheia se transforma em algemas nas próprias mãos". Sua produtora se chama Sin Límite Films. E o filme foi exibido em fevereiro em Havana na sétima Mostra de Novos Realizadores.


Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
Texto do El País, no UOL.

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