Elio Gaspari: Itaipu não é o problema, é a solução
O QUE MENOS importa na eleição de Fernando Lugo para a Presidência do Paraguai é o seu interesse em renegociar o Tratado de Itaipu. Mesmo que por algumas semanas esse tema seja transformado num circo, ele amadurecerá num nível onde se juntam presidentes, diplomatas e técnicos. De boa-fé, nenhum dos dois governos transformará Itaipu num contencioso de 14 mil megawatts. A vitória de Fernando Lugo é uma boa nova porque sua melhor promessa é "fazer com que o Paraguai seja conhecido por sua honestidade e não por sua corrupção".
Lugo derrotou a cleptocracia do Partido Colorado. Em 1949, quando o novo presidente nasceu, os colorados estavam no poder havia três anos. De seus 58 anos de vida, Lugo passou 35 na ditadura do general Alfredo Stroessner (1954-1989, com sete reeleições sucessivas).
A cleptocracia colorada aninhou-se nas fímbrias de Itaipu, no contrabando de Ciudad del Este, nas lavanderias financeiras e na bandidagem da região da Tríplice Fronteira. Lastimavelmente, a cada malfeitoria de paraguaio corresponde outra, de brasileiro. Em alguns casos, a origem da delinqüência esteve ou está do lado de cá.
Por mais de meio século, 16 presidentes brasileiros deram uma mãozinha aos colorados. De todos os empreendimentos binacionais do período, o melhor, de longe, foi a construção de Itaipu. Em outras iniciativas, o governo brasileiro entrou com aquilo que Maradona chamou de "a mão de Deus". Em 1996, Fernando Henrique Cardoso apoiou o presidente Juan Carlos Wasmosy quando ele viajou secretamente a Brasília e avisou que demitiria o general Lino Oviedo. Três anos depois, FFHH ajudou a convencer o Raúl Cubas a deixar o palácio, evitando um conflito armado em Assunção. Em outros episódios, o governo brasileiro entrou com a pata do Tinhoso. Entre os anos 60 e 70, as relações das duas ditaduras estiveram no nível das confrarias mafiosas. Antes que se falasse em Operação Condor, o governo brasileiro repassava ao general Stroessner planos de exilados que pretendiam depô-lo. Em alguns casos, seqüestrou e deportou dissidentes. Numa época em que os generais falavam em nome da moralidade, uma das mais influentes incentivadoras da amizade brasileiro-paraguaia era uma peça que tinha uma perna no serviço público de Pindorama e outra nos serviços de cafetinagem.
A promiscuidade fez mal ao Brasil e ao Paraguai. Os dois países compartilham um grande empreendimento (Itaipu) e um problema que precisa do compromisso dos dois governos com o predomínio da lei e da ordem na região da Tríplice Fronteira. Em 2006, ela foi listada pelo Departamento de Estado americano um dos quatro pontos cegos do mundo, onde a debilidade do Estado faz a força da delinqüência. (Os outros são a fronteira do Afeganistão, a Somália e o mar de Celebes, no Pacífico.)
Ex-bispo, Fernando Lugo é o segundo religioso americano levado à Presidência de seu país. Infelizmente, o primeiro foi o haitiano Jean-Bertrand Aristide, duas vezes eleito e duas vezes deposto (1996 e 2004). Como Lugo, orgulhava-se da origem nas prédicas da Teologia da Libertação. Ambos chegaram ao palácio do governo pelo caminho dos pobres. Aristide acobertou assassinatos e roubalheiras. Quando os americanos mandaram-no para o exílio, não teve quem o defendesse.
Texto de Elio Gaspari, na Folha de São Paulo, em 23 de abril de 2008 (para assinantes).
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