sábado, março 22, 2008

Terrorismo internacional: a lista dos mais procurados


Terrorismo internacional: a lista dos mais procurados

Os apologistas mais vulgares dos crimes dos EUA e Israel explicam com solenidade digna de melhor causa que, enquanto os árabes têm o propósito de matar pessoas, os EUA e Israel não têm a menor intenção de fazê-lo. Seus mortos são, simplesmente, acidentais e não podem ser comparados com os de seus adversários.

No dia 13 de fevereiro passado, foi assassinado em Damasco Imad Moughniyeh, um veterano dirigente do Hezbollah. “O mundo é um lugar melhor sem este homem”, disse o porta-voz do Departamento de Estado, Sean McComarck, e acrescentou que “de um modo ou de outro, foi feita justiça”. E Mike McConnell, Diretor da Inteligência Nacional, acrescentou que Moughniyeh “foi o terrorista responsável pelo maior número de mortes de norte-americanos e israelenses depois de Osama bin Laden”. Israel também deu vazão à sua alegria: “um dos homens mais procurados pelos EUA e por Israel” teria sido justiçado, segundo informou o Financial Times. Com o título de “Um militante procurado em todo o mundo”, foi publicado um relatório segundo o qual Moughniyeh vinha logo após Osama bin Laden na lista dos mais procurados após o 11/9 e, portanto, era o segundo entre os “militantes mais procurados no mundo”.

A terminologia é suficientemente precisa, de acordo com as regras do discurso anglo-americano, que entende por “mundo” a classe política de Washington e Londres (e todos aqueles que concordem com eles em determinados assuntos). Assim, por exemplo, é freqüente ler que todo “o mundo” apoiou George Bush quando ele ordenou o bombardeio do Afeganistão. E isto pode ser verdade para “o mundo”, mas dificilmente para o mundo, como teve boa ocasião de revelar a agência internacional de pesquisa Gallup logo após o anúncio do bombardeio. O apoio mundial foi mínimo. A porcentagem de aceitação em uma América Latina com ampla experiência nas condutas dos EUA oscilou entre os 2% do México e os 16% do Panamá, e inclusive esse minúsculo apoio estava condicionado à prévia identificação dos suspeitos (segundo o FBI, eles ainda estavam sem identificar oito meses depois), e a que os alvos civis estivessem a salvo, coisa que não ocorreu. O mundo mostrava uma esmagadora preferência pela via diplomático-jurídica, mas “o mundo” descartou isso completamente.

Atrás do rastro do terror
No caso presente, se “o mundo” fosse todo o mundo, poderíamos encontrar outros candidatos dignos de honra como arquiinimigos mais odiados. E é instrutivo que nos perguntemos por quê.

O Financial Times informou que a maioria das acusações contra Moughniyeh não estavam provadas, mas “uma das poucas vezes em que é possível afirmar com certeza sua participação [é no] seqüestro do avião da companhia TWA, em 1985, quando foi assassinado um mergulhador da armada norte-americana”. Esta foi uma das duas atrocidades terroristas que, segundo uma pesquisa entre diretores de jornais, fez com que o terrorismo no Oriente Médio se transformasse na notícia mais importante de 1985; a outra foi o seqüestro do navio de linha Archille Lauro, no qual resultou brutalmente assassinado Leon Klinghoffer, um inválido norte-americano. Isto reflete o julgamento do “mundo”. É possível que o mundo visse as coisas de outra maneira.

O seqüestro do Achille Lauro foi a represália pelo bombardeio da Tunísia, ordenado uma semana antes pelo Primeiro-Ministro israelense Simón Peres. Sua força aérea assassinou setenta e cinco tunisianos e palestinos com bombas inteligentes que os deixaram em mil pedaços, entre outras atrocidades narradas de maneira vívida pelo destacado jornalista israelense Amnon Kapeliouk. Washington colaborou, uma vez que omitiu advertir seu aliado tunisino de que as bombas estavam a caminho, e é impossível que a Sexta Frota e a inteligência norte-americana não soubessem do iminente ataque. George Schultz, então Secretário de Estado, comunicou ao Ministro israelense de Assuntos Exteriores, Yitzhak Shamir, que em Washington “a ação israelense despertou uma enorme simpatia”, e qualificou essa ação –com o aplauso geral— como uma “resposta legítima” aos “ataques terroristas”.

Poucos dias depois, o Conselho de Segurança da ONU denunciou de forma unânime (com a abstenção dos EUA) os bombardeios como um “ato de agressão armada”. Sobra dizer que “agressão” é um crime muito mais grave que terrorismo internacional. Mas, concedendo o beneficio da dúvida aos EUA e a Israel, vamos deixar que recaia sobre os responsáveis apenas a acusação menos grave.

Poucos dias antes, Peres foi a Washington para consultar com o principal terrorista internacional do momento, Ronald Reagan, que denunciou “o terrível flagelo do terrorismo”, novamente com o aplauso geral do “mundo”.

Os “ataques terroristas” que Shultz e Peres pretextaram para bombardear a Tunísia foram os assassinatos de três israelenses em Larnaca, Chipre. Os assassinos, como admitiu Israel, não tinham nenhuma relação com a Tunísia, mas talvez tivessem conexões com a Síria. Contudo, a Tunísia era um alvo bem melhor: estava inerme, diferente de Damasco. Além disso, proporcionava um prazer adicional: ali podiam ser assassinados mais palestinos exilados.

Por sua vez, os assassinatos de Larnaca foram considerados uma represália de seus perpetradores: uma resposta aos sistemáticos seqüestros israelenses em águas internacionais, que resultaram nos assassinatos de muitas pessoas e no seqüestro e conseguinte encarceramento de muitas outras, retidas sem acusações por longos períodos em cárceres israelenses. A mais famosa destas foi a prisão/câmara-de-tortura 1391. Há muita informação sobre isso na imprensa israelense e estrangeira. Esses crimes sistemáticos, é claro, são conhecidos pelas redações dos jornais dos EUA e, de vez em quando, são mencionados quase de passagem.

O assassinato de Klinghoffer's foi vivenciado com uma verdadeira sensação de horror e é muito célebre. Transformou-se em tema de uma ópera aclamada e em roteiro de um filme feito para a televisão. Mas também causaram horror os assombrosos comentários condenando a selvageria dos palestinos: “bestas bicéfalas” (segundo o Primeiro-Ministro Menachen Begin), “baratas drogadas debatendo-se em uma garrafa” (segundo o Chefe da Equipe Raful Eitan), “como grilos, comparados a nós”, seres cujas cabeças deveriam ser “transformadas em picadinho batendo-as contra o canto rodado das paredes” (disse o Primeiro-Ministro Yitzhak Shamir). Ou, simplesmente, chamados de araboushim, o equivalente ao nosso “judeu” ou ao nosso “negro”.

Assim, depois de uma exibição particularmente depravada de terror militar e de uma intencionada humilhação na cidade de Halhul, na Ribeira Ocidental, em dezembro de 1982 (deixou incomodados até os falcões israelenses!), o conhecido analista militar e político Yoram Peri escreveu consternado: “hoje, um dos objetivos do nosso exército [é] demolir os direitos de pessoas inocentes simplesmente porque são araboushim que vivem em territórios que Deus prometeu a nós”, tarefa, esta, cada vez mais urgente, e que se realiza com crescente brutalidade desde que os araboushim começaram a “levantar a cabeça” uns anos atrás.

Não é difícil averiguar se os sentimentos expressados com motivo do assassinato de Klinghoffer foram sinceros. Basta investigar a reação diante dos crimes israelenses respaldados pelos EUA. Vamos pensar, por exemplo, no assassinato de dois inválidos palestinos em abril de 2002, Kemal Zughayer e Jamal Rashid, pelas mãos das forças israelenses em incursão no campo de refugiados de Jenin, na Ribeira Ocidental. Os jornalistas britânicos encontraram o corpo esmagado de Zughayer e os restos da sua cadeira de rodas, junto com o que restava de uma bandeira branca que ele segurava no momento de ser assassinado, quando tentava fugir dos tanques israelenses que foram lançados sobre ele partindo seu rosto em dois pedaços e amputando braços e pernas. Jamal Rashid terminou esmagado em sua cadeira de rodas quando uma das enormes pás escavadoras fornecidas pelos EUA destruiu sua casa em Jenin, com toda sua família dentro. A diferente reação, ou por melhor dizer, a falta absoluta de reação, é a rotina, e é tão fácil de explicar que não precisa de maiores comentários.

Carro-Bomba
Simplesmente, o bombardeio da Tunísia em 1985 foi um crime terrorista infinitamente mais grave do que o seqüestro do Achille Lauro, ou que o crime ocorrido nesse mesmo ano em que a participação de Moughniyeh`s “podia ser estabelecida com certeza”. Mas mesmo o bombardeio tunisiano tem competidores para o prêmio no concurso das maiores atrocidades terroristas no Oriente Médio desse ano ímpar que foi 1985.

Um dos aspirantes foi o carro-bomba colocado em Beirute na saída de uma Mesquita e programado para explodir quando os devotos se retiravam depois de suas orações de sexta-feira. A bomba matou 80 pessoas e feriu outras 256. A maioria dos mortos eram meninas e mulheres que saíam da Mesquita, apesar de que a ferocidade da onda expansiva “carbonizou bebês em seus berços”, “matou uma noiva que estava comprando seu enxoval”, e “fez voar pelos ares três crianças que voltavam para casa vindas da Mesquita”. Também devastou a rua principal do subúrbio densamente povoado de Beirute oeste, como informou há três anos Nora Boustany no Washington Post.

O alvo pretendido era o clérigo Shiita Sheikh Mohammad Hussein Fadlallah, que conseguiu escapar com vida. O atentando foi perpetrado pela CIA de Reagan e seus aliados sauditas, com ajuda britânica, e autorizado especificamente pelo Diretor da CIA, William Casey, segundo o relato do jornalista do Washington Post, Bob Woodward, em seu livro "O Véu: as guerras secretas da CIA 1981-1987". Muito pouco se conhece além dos meros fatos, graças à escrupulosa aceitação da doutrina, segundo a qual não se deve investigar nossos próprios crimes (a menos que fiquem conhecidos demais para que possamos negá-los e a investigação fique limitada ao círculo de umas poucas “maçãs podres” subalternas que, todo o mundo já sabe, agem de modo “descontrolado”).

“Aldeões terroristas”
O terceiro candidato ao prêmio do terrorismo no Oriente Médio de 1985 foram as operações “Iron Fist” [Punho de Ferro] do Primeiro-Ministro Peres nos territórios do sudeste do Líbano, ocupados nesse momento por Israel, violando as ordens do Conselho de Segurança da ONU. O objetivo, segundo os altos mandos israelenses, eram os chamados “terroristas aldeões”. Neste caso, os crimes de Peres derraparam pelos novos caminhos da “brutalidade calculada” e do “assassinato arbitrário”, segundo palavras de um diplomata ocidental entendido nestes temas, afirmações posteriormente corroboradas pelas filmagens ao vivo dos fatos. Mas como nada disso interessava ao “mundo”, não foram investigados. Como de costume. Seria legítimo perguntar se esses crimes se enquadram sob a categoria de terrorismo internacional ou sob a categoria, bem mais grave, de crime de agressão. Mas vamos conceder, mais uma vez, o beneficio da dúvida a Israel e seus sequazes de Washington, e vamos nos conformar com a acusação menos grave de terrorismo.

Essas são algumas das idéias que podem passar pela cabeça das pessoas de qualquer lugar do mundo – que não nas do “mundo”—, quando pensam naquela “ocasião”, “uma das poucas” em que Imad Moughniyeh esteve claramente envolvido em um crime terrorista.

Os EUA acusam-no, também, de ter sido responsável pelos ataques arrasadores contra a marinha dos EUA e os barracões de pára-quedistas franceses no Líbano, em 1983, ataques perpetrados com um caminhão bomba e dois suicidas e que resultaram na morte de 241 marines e 58 pára-quedistas. E também de um ataque anterior contra a Embaixada dos EUA em Beirute, que matou sessenta e três pessoas e foi particularmente grave, porque nesse momento estava sendo realizada uma reunião em que participavam funcionários da CIA.

Contudo, o Financial Times atribuiu o ataque contra os barracões à Jihad islâmica e não ao Hezbollah. Fawz Gerges, um dos acadêmicos destacados no estudo dos movimentos Jihad e do Líbano, escreveu que um “grupo desconhecido denominado Jihad islâmica” assumiu a responsabilidade. Uma voz que falava em árabe clássico instou todos os norte-americanos a deixarem o Líbano, ou enfrentariam a morte. Tem sido dito que Moughniyeh era, nesse momento, o cabeça da Jihad islâmica, mas, até onde alcança meu conhecimento, há escassas provas disso.

Não existem sondagens da opinião mundial a esse respeito, mas é bem provável que se deva chamar de “ataque terrorista” o ataque a uma base militar radicada em um país estrangeiro, especialmente porque as forças dos EUA e da França estavam desenvolvendo vigorosos bombardeios navais e aéreos no Líbano pouco depois que os EUA prestassem um apoio decisivo à invasão israelense do Líbano em 1982, que acabou com a vida de umas 20.000 pessoas e devastou o sul, deixando grande parte de Beirute em ruínas. Finalmente, o Presidente Reagan suspendeu os ataques quando o protesto internacional após os massacres de Sabra-Shtila subiu de tom a tal ponto, que não pôde mais ser ignorado.

Geralmente, nos EUA, a invasão israelense do Líbano é descrita como uma reação aos ataques terroristas no norte de Israel, a partir de bases libanesas, por parte da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), explicação que torna compreensível nossa crucial contribuição para esses crimes de guerra maiores. No mundo real, a fronteira libanesa esteve quieta durante um ano, apesar de repetidos ataques israelenses, muitos deles sangrentos, tendentes provocar alguma resposta da OLP que servisse como pretexto para uma invasão já decidida e planejada. Os comentaristas e líderes israelenses não confessaram seu verdadeiro propósito nesse momento: salvaguardar o poder israelense na zona ocupada da Margem Ocidental.

Não carece de interesse o fato de que o único erro grave do livro de Jimmy Carter ("Palestina: Paz ou Apartheid") seja a reiteração deste coquetel propagandístico, segundo o qual os ataques da OLP a partir do Líbano foram a causa da invasão por parte de Israel. Sobre o livro choveram ataques e têm sido feitos esforços desesperados para encontrar alguma frase que pudesse ser mal interpretada, mas este erro flagrante, o único, foi ignorado. E com razão, porque assim se cumpre com o critério de respeitar as falsificações doutrinárias úteis.

Matar sem querer
Outra das acusações contra Moughniyeh: foi transformado no “cérebro” da bomba na Embaixada de Israel em Buenos Aires que, no dia 17 de março de 1992, matou vinte e nove pessoas. Foi uma resposta – como disse o Financial Times — ao assassinato por parte de Israel do antigo chefe do Hezbollah, Abbas Al-Mussawi no transcurso de um ataque aéreo no sul do Líbano”. Sobre o assassinato não são necessárias maiores provas, porque Israel assumiu com orgulho o mérito. Mas o mundo poderia ter um certo interesse no resto da história. Al-Mussawi foi assassinado com um helicóptero fornecido pelos EUA em uma zona muito ao norte da “zona de segurança” ilegalmente afixada por Israel no sul do Líbano. Estava a caminho de Sidon vindo de Jibshit, depois de dissertar em um ato em memória de outro imã assassinado pelas forças israelenses. O ataque do helicóptero também acabou com sua esposa e seu filho de cinco anos. Após o ataque, Israel serviu-se de outros helicópteros, também fornecidos pelos EUA, para atacar um caminhão que transportava os sobreviventes do primeiro ataque para um hospital.

Depois do assassinato da família, o Hezbollah “mudou as regras do jogo”, informou o Primeiro-Ministro Rabin perante o Parlamento israelense. Nunca antes tinham sido lançados mísseis contra Israel. Até aquele momento, as regras do jogo eram que Israel podia lançar ataques mortíferos onde quisesse e segundo seu arbítrio, e o Hezbollah tinha que se limitar a responder dentro do território libanês ocupado por Israel.

Após o assassinato de seu líder (e de sua família), o Hezbollah começou a responder os crimes de Israel no Líbano atacando o norte de Israel. Isto é, evidentemente, terror intolerável, ou seja que Rabin lançou uma invasão que expulsou de seus lares 500.000 pessoas e matou mais de 100. Os inclementes ataques israelenses chegaram até o norte do Líbano.

No Sul, 80% da cidade de Tiro fugiu e Nabatiye ficou reduzida a uma “cidade fantasma”. Segundo um porta-voz do exército israelense, Jibshit foi destruída em 70%, e ele acrescentou que o objetivo era “destruir a cidade por completo, dada sua importância para a população shiita do sul do Líbano”. O objetivo era “apagar as cidades da face da terra e semear destruição em seu entorno”, segundo descreveu essa operação um veterano oficial do comando norte israelense.

É possível que Jibshit tenha sido um objetivo cobiçado porque foi a terra do Sheik Abdul Karim Obeid, seqüestrado e levado para Israel vários anos antes. A pátria de Obeid “recebeu o impacto direto de um míssil”, informou o jornalista britânico Robert Fisk, “ainda que o mais provável é que os israelenses estivessem atirando contra sua mulher e seus três filhos”. Mark Nicholson escreveu no Financial Times que aqueles que não escaparam esconderam-se aterrorizados, “porque era possível que qualquer movimento dentro ou fora de suas casas atraísse a atenção da artilharia israelense, a qual estava disparando seus projéteis repetida e arrasadoramente sobre objetivos selecionados”. Por momentos, os projéteis da artilharia alvejavam algumas aldeias a um ritmo de mais de dez disparos por minuto.

Todos estes fatos contaram com o firme aval do Presidente Bill Clinton, que entendeu a necessidade de instruir com severidade os araboushim sobre “as regras do jogo”. E Rabin apareceu como o outro grande herói, como o homem da paz, muito diferente das “bestas bicéfalas”, “dos grilos” e das “baratas drogadas”. Esta é, simplesmente, uma pequena amostra dos fatos que poderiam ter interesse para o mundo, uma vez relacionados com a suposta responsabilidade de Moughniyeh no ato de vingança terrorista em Buenos Aires.

Outra das acusações é que Moughniyeh ajudou a preparar as defesas do Hezbollah contra a invasão israelense do Líbano, em 2006, um crime terrorista intolerável, conforme os critérios do “mundo”, convencido de que nada deve cruzar-se no caminho do justo terror e da agressão praticados pelos EUA e seus clientes.

Os apologistas mais vulgares dos crimes dos EUA e Israel explicam com solenidade digna de melhor causa que, enquanto os árabes têm o propósito de matar pessoas, os EUA e Israel – sendo, como são, sociedades democráticas— não têm a menor intenção de fazê-lo. Seus mortos são, simplesmente, acidentais, e por isso seus assassinatos não podem ser comparados, no ponto da depravação moral, com os de seus adversários. Esta foi, por exemplo, a posição do Tribunal Supremo de Israel quando recentemente autorizou um severo corretivo coletivo contra o povo de Gaza, privando-o de eletricidade (e de água, de eliminação de resíduos e águas servidas e de outros elementos básicos da vida civilizada).

Uma linha de defesa, esta, que é recorrente na hora de enfrentar outros velhos pecadilhos de Washington. Por exemplo, a destruição da Planta Farmacêutica ao-Shifa no Sudão, em 1998. Aparentemente, o ataque custou dez mil vidas, mas não houve qualquer intenção de matá-las; daí que não fosse um crime resultante de uma ordem com expressa intenção de matar. Assim nos ensinam esses moralistas sistematicamente empenhados em apagar toda réplica efetiva a essas vulgares tentativas de autojustificação. Vamos dizer mais uma vez: é possível distinguir três categorias de crimes: assassinato intencional, morte acidental e assassinato premeditado mas sem uma intenção específica. As atrocidades dos EUA e Israel são um caso típico da terceira categoria.

Assim, quando Israel destruiu o fornecimento de energia em Gaza ou colocou obstáculos para viajar para a Ribeira Oriental, não teve a intenção específica de assassinar as pessoas que morreriam pela contaminação da água, ou em ambulâncias que não podiam chegar até os hospitais. E quando Bill Clinton ordenou o bombardeio da planta ao-Shifa, era óbvio que isso poderia terminar em uma catástrofe humana. O Observatório de Direitos Humanos deu a ele essa informação imediatamente, facilitando todo tipo de detalhes, mas nem Clinton nem seus assessores quiseram matar pessoas concretas entre aqueles que inevitavelmente morreriam quando a metade das instalações da planta farmacêutica foram destruídas em um país africano pobre que não poderia reconstruí-la.

Ocorre, na verdade, que eles e seus apologistas olham para os africanos sentindo o que nós sentiríamos ao esmagar uma formiga quando caminhamos pela rua. Somos conscientes de que é possível que ocorra (se nos incomodarmos em pensar sobre isso), mas não queremos matá-las, porque não são dignas nem dessa consideração. Não é necessário dizer que ataques similares perpetrados por araboushim em áreas habitadas por seres humanos seriam considerados de maneira muito diferente.

Se por um momento fôssemos capazes de adotar a perspectiva do mundo, poderíamos nos perguntar quem são os criminosos “mais procurados no mundo inteiro”.

Noam Chomsky é professor emérito de lingüística no Instituto de Tecnologia de Massachussets.

Tradução: Naila Freitas / Verso Tradutores

Texto da Agência Carta Maior.

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