O dia a dia do gueto de Varsóvia, segundo suas vítimas
Vítimas do nazismo registraram em papel os crimes perpetrados na Polônia
Jan Friedmann
Cerca de 50 homens e mulheres no Gueto de Varsóvia escolheram uma forma especial de resistência. Em um arquivo secreto, eles documentaram seu caminho para a morte para futuras gerações, narrando os crimes dos nazistas enquanto eram perpetrados.
David Graber tinha 19 anos quando rabiscou às pressas sua carta de despedida. “Eu adoraria experimentar o momento em que este grande tesouro for descoberto e o mundo for confrontado com a verdade”, ele escreveu.
Enquanto soldados alemães revistavam as ruas no lado e fora, Graber e seu amigo Nahum Grzywacz enterraram 10 caixas de metal no porão de uma escola primária na Rua Nowolipki, no gueto judeu de Varsóvia. Era 2 de agosto de 1942.
As caixas foram desenterradas mais de quatro anos depois. Àquela altura, Graber e Grzywacz já estavam mortos há muito tempo, assassinados como quase todos seus aproximadamente 50 colaboradores. Apenas três sobreviveram ao terror nazista. Eles forneceram a informação que levou à recuperação das caixas.
O tesouro enterrado consistia de cerca de 35 mil pedaços de papel que um grupo de cronistas reuniu e utilizou para documentar o modo como, durante a Segunda Guerra Mundial, a ocupação alemã privou os judeus de Varsóvia de seus direitos, os atormentou e, finalmente, os matou nos campos de extermínio. “Esses materiais contam uma história coletiva de declínio constante e humilhação sem fim, intercalada por muitas histórias de heroísmo discreto e sacrifício próprio”, escreve o historiador americano Samuel Kassow. Seu livro, “Quem Escreverá Nossa História?: Os Arquivos Secretos do Gueto de Varsóvia”, que agora está sendo publicado em tradução em alemão, lança uma nova luz sobre essa fonte excepcional.
Textos apavorantes
Os judeus também reuniram documentos e escreveram diários por toda a parte na Europa durante o Holocausto, mas o arquivo de Varsóvia é a coleção mais abrangente e descritiva de todas. A capital polonesa era lar da maior comunidade judaica da Europa, que se transformou em ímã para muitos cientistas e escritores talentosos. Como uma autora escreveu, ela esperava que seu relato seria “inserido sob a roda da história como uma cunha”. Contribuições como a dela transformariam o arquivo clandestino naquele que provavelmente é o corpo de textos mais apavorante já escrito a respeito sobre o Holocausto.
O grupo chamava a si mesmo de Oyneg Shabes, ou “Alegria do Sábado”, porque costumava se reunir nas tardes de sábado, a partir de novembro de 1940. O principal pensador do grupo, que incluía um grande número de intelectuais, jornalistas e professores, era Emanuel Ringelblum, um historiador nascido na Galícia em 1900. Ele escreveu uma dissertação de doutorado na Universidade de Varsóvia sobre a história dos judeus da cidade antes de 1527, e fazia parte da organização judaica de autoajuda “Aleynhilf”.
Duas semanas antes do estouro da Segunda Guerra Mundial, Ringelblum participou do Congresso Sionista Mundial em Genebra, como enviado do partido marxista Poalei Zion. Os outros delegados lhe disseram que era perigoso demais voltar para a Polônia e pediram para que permanecesse na Suíça, mas Ringelblum queria estar com sua esposa Yehudis e seu filho de nove anos, Uri. Ele mal tinha chegado em casa quando tropas alemãs invadiram a Polônia e capturaram Varsóvia logo depois.
Em outubro de 1940, as autoridades de ocupação decretaram que todos os judeus seriam transferidos para um distrito residencial separado. Trabalhadores então construíram um muro de três metros ao redor da área. Os alemães também transferiram os judeus do interior próximo para o gueto de Varsóvia. Logo, meio milhão de pessoas estava vivendo em uma área de apenas quatro quilômetros quadrados.
Ringelblum e seus companheiros do Oyneg Shabes reconheceram rapidamente a dimensão do drama e começaram a documentá-lo para a posteridade. Eles reuniram decretos, cartazes, cartões de ração, cartas, diários e desenhos –documentos de horror em iídiche, alemão e polonês.
Um dos documentos especificava a distribuição média diária de calorias para 1941, segundo a qual os alemães receberiam 2.613 quilocalorias, os poloneses receberiam 699 e os judeus apenas 184. Os moradores do gueto tinham que contrabandear alimentos para sobreviver. O arquivo usava salários e preços no mercado negro para realizar pesquisa de mercado e preparar cálculos de amostra para uma família de quatro.
Questionários e concursos de redação
Como etnólogos, os narradores saíram para investigar seu ambiente, cientistas estudando seu próprio meio. Eles distribuíam questionários padronizados e conduziam centenas de entrevistas com refugiados e pessoas à beira da fome.
Entre 1940 e 1942, cerca de 100 mil morreram de fome, exposição a temperaturas frias e doenças. Em novembro de 1941, Ringelblum, descrevendo as mortes ao seu redor, escreveu: “A coisa mais terrível é olhar para as crianças congelando... Hoje, ao anoitecer, eu ouvi o gemido de um garotinho de três ou quatro anos. Provavelmente amanhã eles encontrarão seu pequeno cadáver”.
O arquivo realizou um concurso de redação para encorajar as crianças traumatizadas a contar suas histórias. Uma menina de 15 anos descreveu como sua mãe morreu ao seu lado: “Durante a noite, eu a senti ficando fria e rígida. Mas o que eu poderia ter feito? Eu fiquei deitada lá até o amanhecer, ainda agarrada ao seu corpo, até que um vizinho me ajudou a tirar o corpo dela da cama e colocá-la no chão.”
Do lado de fora, os moradores corriam constantemente o risco de serem detidos por um policial alemão e então serem espancados ou baleados. Os moradores do gueto até mesmo tinham um nome para uma rua particularmente perigosa, feito um gargalo: “Dardanelos”.
Evidência contrabandeada do programa de extermínio
Em 1942, os narradores começaram a receber notícias dramáticas de outras partes do país. Refugiados contavam sobre fuzilamentos em massa e sinagogas incendiadas. Um refugiado contou aos narradores como a SS tinha usado gás para matar pessoas em vagões de trem em Chelmno, a oeste de Varsóvia.
As mortes em escala industrial tinham começado, levando muitos a se perguntarem quando o “Inferno dos Judeus Poloneses”, como diz o título de um dos documentos no arquivo, chegaria a Varsóvia. Vários oficiais alemães tinham prometido ao líder do conselho judeu, Adam Czerniakow, que o Gueto de Varsóvia seria poupado. Mas em 22 de julho de 1942, o oficial alemão da SS, Herman Höfle, anunciou que o “reassentamento” tinha começado. Poucos dias depois, os ajudantes dos arquivistas enterraram a primeira das caixas de metal.
A Gestapo e a polícia judaica reuniram os moradores e os levaram para o “ponto de transbordo”, onde começaram os transportes para o campo de extermínio de Treblinka. Uma proclamação particularmente cínica, datada de 29 de julho, atraía os judeus famintos com a promessa de que aqueles que fossem voluntariamente ao ponto receberiam uma ração de três quilos de pão e um quilo de marmelada. Em um esforço para enganar aqueles que foram deixados para trás, os deportados eram forçados a enviar para casa cartões postais tranquilizadores dos campos de extermínio.
Os arquivistas já tinham começado a estudar o Holocausto enquanto ele estava em pleno andamento. Em vários casos, eles conseguiram contrabandear evidência do programa de extermínio para o exterior, inclusive para a “BBC” em Londres. Ringelblum esperava, em vão como se revelou, que seu grupo tinha “concluído uma tarefa histórica e talvez salvo centenas de milhares do extermínio”.
O gueto foi rapidamente esvaziado. Segundo uma estatística no arquivo, 99% de todas as crianças já tinham sido deportadas em novembro de 1942. Ainda havia 60 mil pessoas vivendo na área residencial, a maioria homens que trabalhavam nas oficinas. Muitos entregaram suas reflexões pessoais ao arquivo, documentos de grande poder emocional.
Abraham Lewin, um professor, descreveu como sua esposa caiu nas mãos dos capangas “Houve um eclipse solar e ficou completamente escuro. Minha Luba foi detida em um bloqueio de estrada. Eu ainda vejo um brilho de esperança diante dos meus olhos. Talvez ela seja poupada. Caso contrário, o que Deus pode impedir?”
Levante reprimido
Outro professor, Natan Smolar, lamentou sua “única e amada filha Ninkele”, cujo terceiro aniversário a família tinha recém celebrado. “Havia tantos brinquedos, havia tanto barulho e diversão, tanta alegria e gritaria das crianças. E hoje Ninkele se foi, sua mãe se foi, assim como minha irmã Etl.”
Aqueles que permaneceram no gueto foram atormentados por sentimentos de culpa. Eles se queixavam de que “os judeus se deixaram levar como ovelhas para o abate”. Um homem escreveu: “Se todos tivéssemos escalado o muro do gueto e tomado as ruas de Varsóvia, armados com facas, machados ou mesmo pedras –então eles talvez teriam matado 10 mil ou 20 mil, mas nunca 300 mil!”
Restaram poucos documentos sobre a resistência armada que acabou ocorrendo, em abril de 1943. Os alemães reprimiram brutalmente o levante. O líder da brigada da SS, Jürgen Stroop, mandou incendiar os prédios, um atrás do outro, e explodiu a principal sinagoga. Em 16 de maio de 1943, ele relatou: “A antiga área residencial judaica de Varsóvia não existe mais”.
Àquela altura, o historiador Ringelblum e sua família já tinham fugido para o setor não-judeu de Varsóvia. Ele passou os últimos poucos meses de sua vida junto a outros 40 homens, mulheres e crianças em um porão de sete por cinco metros sob uma estufa que pertencia a um comerciante de verduras polonês. Dia após dia, Ringelblum ficava sentado na ponta de uma longa mesa, entre fileiras de beliches, cercado por seus livros e listas.
O esconderijo foi descoberto em março de 1944, quando a namorada do polonês o traiu após eles se separarem. Ringelblum foi levado para a notória prisão de Pawiak, onde seus captores o torturaram na esperança de que ele revelaria detalhes sobre combatentes da resistência judaica. Então os alemães mataram a tiros o narrador de seus crimes, juntamente com sua família e os outros prisioneiros.
Seis dias antes de seu esconderijo ser descoberto, Ringelblum escreveu a um amigo sobre seu arquivo: “Se nenhum de nós sobreviver, pelo menos isto restará”.
Tradução: George El Khouri Andolfato
Texto do Der Spiegel, republicado no UOL.
Marcadores: gueto, história, Holocausto, Nazismo
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