Erguer pontes...
É preciso aprender a erguer pontes sobre o abismo
NOVA YORK
A mediação do Brasil e da Turquia em um acordo para retirar do Irã a maior parte do urânio de baixo nível de enriquecimento (LEU, na sigla em inglês) é importante, seja ele implementado ou não. O motivo é que é um presságio do mundo pós-ocidental emergente.
A predominância anglo-saxã ainda não terminou, mas está em declínio. Washington reagiu negativamente, dizendo que havia esboçado um acordo para seguir com uma quarta rodada de sanções contra o Irã no Conselho de Segurança da ONU. Mas as sanções falharam no passado, e a reação levanta a questão de por que um arranjo que parecia aceitável quando negociado por diplomatas americanos em outubro passado já não é mais.
A violência infligida a sua própria população pelo regime iraniano depois da eleição roubada de 12 de junho do ano passado foi inadmissível, mas ainda é verdade que o isolamento e o confronto só beneficiam a ala linha-dura do Irã, que acha fácil contornar a retórica americana do "eixo do mal". Afinal, quanto mais o Irã puder ser retirado de sua atual posição de pária, melhor para as forças reformistas de lá. Elas são jovens e estão famintas por contato com o mundo.
A Turquia e o Brasil são potências regionais emergentes com interesses econômicos em expansão no Irã e crescentes ambições diplomáticas. Seu envolvimento agradou ao governo iraniano, que gosta de se posicionar como líder de uma nova ordem mundial. O posicionamento é um agravante para o Ocidente, mas, neste caso, isso não importa, se o objetivo central puder ser alcançado: criar espaço para o diálogo e a remoção do urânio de 3,5% de pureza que o Irã tem produzido nas centrífugas de Natanz.
O acordo retoma em grande parte um outro negociado pelos EUA em 2009 e que desandou. A única diferença significativa é que agora o Irã tem mais LEU, com o resultado de que os 1.200 kg a serem levados para a Turquia representariam uma proporção menor do estoque, embora ainda mais da metade.
Não acho que isso importe muito porque o Irã, se honrar o acordo, estará demonstrando uma disposição para trabalhar com a comunidade internacional e remover grande parte do LEU necessário para fazer o urânio altamente enriquecido usado em uma bomba.
Diante da antiga duplicidade e da intransigência iranianas, é recomendável prudência. Mas eu sinto no intenso ceticismo inicial do Ocidente um desprezo mal disfarçado pelos esforços do presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, e do premiê turco, Recep Tayyip Erdogan.
Isso é um erro. Exatamente porque o Irã investiu muito em suas relações com a Turquia e o Brasil, agora relutará em fazer de bobos os dois líderes e recuar.
O presidente dos EUA, Barack Obama, enfrenta uma decisão delicada. Seu coração sempre foi favorável a uma reaproximação com o Irã. Ele vê, acertadamente, que o impasse americano-iraniano de 31 anos é obsoleto e prejudicial. Mas a fúria tem varrido o Congresso, cujos representantes prometeram sanções "esmagadoras" e "paralisantes" contra Teerã.
Grande parte do esforço dos EUA foi dedicado ao lobby para que o CS da ONU produza um acordo sobre sanções de seus cinco membros permanentes, com poder de veto -EUA, Reino Unido, França, Rússia e China-, mais Alemanha. Em vez de dizer que a pressão funcionou, na forma da aparente disposição iraniana a se desfazer do LEU, o governo Obama parece ter optado por uma linha dura. Isso foi tentado sob o governo Bush e não deu em nada.
O Irã demonstrou que, de modo geral, é imune às sanções. Se elas falharem mais uma vez em mudar o comportamento iraniano, Obama enfrentará a pergunta: e agora? Ele sabe que EUA e Ocidente não podem suportar uma terceira guerra com um país muçulmano.
Por isso o acordo brasileiro-turco vale a pena. Obama disse à ONU no ano passado que os EUA queriam terminar com a unilateralidade, mas precisavam que os outros países assumissem responsabilidades. "Os que costumavam censurar os EUA por agirem sozinhos agora não podem ficar de lado e esperar que os EUA solucionem sozinhos os problemas do mundo", ele declarou, acrescentando: "Juntos, devemos construir novas coalizões para superar antigas divisões -coalizões de fés e credos diferentes; de norte e sul, leste, oeste, preto, branco e marrom".
Novas coalizões para superar antigas divisões? Para mim, soa como Brasil e Turquia unindo-se para ajudar o Irã e os EUA a superar o abismo que os separa. Isso, por sua vez, ofereceria a possibilidade de aprofundar a paz no Oriente Médio e a segurança global.
Texto do The New York Times, reproduzido na Folha de São Paulo, de 24 de maio de 2010.
Marcadores: Brasil, Estados Unidos, Irã, Iran, proliferação nuclear, Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, Turquia
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