Alemanha é fonte de desequilíbrio na Europa, diz ex-ministro
Alemanha é fonte de desequilíbrio na Europa, diz ex-ministro
CLAUDIA ANTUNES
DO RIO DE JANEIRO
A Alemanha - e não a Espanha, Portugal ou mesmo a Grécia - é a principal fonte de desequilíbrio estrutural na região do euro, afirma o economista alemão Heiner Flassbeck.
Flassbeck foi vice-ministro das Finanças de seu país em 1998 e 1999, quando foi implantada a moeda única europeia. Hoje, dirige a Divisão de Globalização e Estratégias de Desenvolvimento da Unctad (conferência da ONU para o comércio e o desenvolvimento), em Genebra.
Ele explica: ao praticar arrocho salarial nos últimos dez anos, com aumento real de apenas 4% no período, muito abaixo do crescimento da produtividade, a Alemanha passou a comprar menos e aumentou ainda mais a competitividade de seus produtos em relação aos dos demais países da zona do euro.
Como a moeda única impede que os vizinhos mexam no câmbio para estimular suas exportações, eles passaram a ter deficit comerciais e em conta-corrente (saldo de todo o dinheiro que entra e sai do país), enquanto a Alemanha acumula superavit.
Para Flassbeck, sem um movimento coordenado para sair desse impasse, "não haverá solução a longo prazo" para a união monetária.
Ele também afirma que os cortes de gastos já anunciados por alguns governos da região não podem ser generalizados porque provocarão deflação, maior risco imediato para as economias europeias.
O diretor da Unctad estará em São Paulo no início desta semana. Falará na Unicamp e participará de um debate fechado sobre "novo desenvolvimentismo" organizado pelo economista e ex-ministro Luiz Carlos Bresser-Pereira, colunista da Folha.
Ele falou por telefone, de Genebra. Abaixo, os principais trechos
FOLHA - Por que o pacote de resgate e os cortes de gastos anunciados na Europa nas últimas duas semanas não acalmaram os mercados?
HEINIR FLASSBECK - O que fizeram agora foi atacar o problema de curto prazo, mas o problema de médio e longo prazo na união monetária europeia é a diferença de competitividade entre a Alemanha, de um lado, e os países do sul da Europa.
Há tensões abertas entre a Alemanha e a França porque falta vontade ao governo alemão para resolver essa questão. Sem isso, não haverá solução de longo prazo para a área do euro.
FOLHA - O senhor diz que parte dessa diferença de competitividade vem da compressão dos salários na Alemanha, em comparação com os ganhos no sul. A Espanha cortou salários e congelou aposentadorias. É uma forma de resolver isso?
FLASSBECK - Não é a maneira correta. Se o problema não for atacado de modo coordenado, todo mundo cortará salários e isso levará à deflação, maior risco para a zona do euro, resultado mais provável neste momento e a principal razão da continuidade da inquietação.
¦Enquanto o governo alemão não reconhecer que há um problema, e enquanto não estiver disposto a conversar com seus empresários e sindicatos sobre como resolvê-lo, não haverá uma saída clara da crise.
FOLHA - O senhor defende que a Alemanha reduza a própria competitividade por meio de aumentos de salários?
FLASSBECK - Sim. A Alemanha cortou os salários dramaticamente e violou a meta comum de inflação [de 2% ao ano], praticando uma inflação próxima de zero.
Os dois estão relacionados e o custo unitário do trabalho [salário nominal menos produtividade, por unidade gerada do PIB] está abaixo da meta de inflação. A regra que deveria valer para todo mundo é que esse custo deveria estar sob a linha de 2%. Alguns ficaram acima disso, mas a Alemanha ficou muito abaixo.
Isso leva a uma situação insustentável, no mundo todo. O superavit [comercial] alemão está agora tão grande quanto o chinês.
FOLHA - A OCDE (grupo de 31 países industrializados) divulgou relatório sobre a economia francesa recomendando mais flexibilidade no mercado de trabalho e reforma da Previdência Social. É o oposto do que o senhor prescreve, não?
FLASSBECK - Isso é nonsense. A França é o único país europeu que entendeu as causas da crise. Se todos os países começarem a cortar salários, o resultado líquido e certo será deflação.
Essa recomendação reflete o pensamento econômico convencional, de que ter salários flexíveis, principalmente para baixo, resolve tudo. Foi o dogma que a Alemanha seguiu e que nos trouxe à situação atual.
FOLHA Não é uma contradição que se recomende políticas ortodoxas quando há apenas dois anos, quando a crise começou nos EUA, dizia-se que a ortodoxia estava morta?
FLASSBECK - Claro que não era verdade quando todos se proclamaram keynesianos. Agora começa a verdadeira batalha ideológica, sobre o que vamos fazer com o mercado de trabalho.
FOLHA - Mas o aumento da competição da China e dos EUA, que querem aumentar suas exportações, não é um desafio letal para o Estado de bem-estar europeu?
FLASSBECK - De modo nenhum. Enquanto tivermos aumento de produtividade, os salários podem aumentar. Sempre que fizermos o oposto, mais cedo ou mais tarde nossa taxa de câmbio aumentará, o que também diminui a competitividade.
Você não pode estar sempre ganhando competitividade em relação ao resto do mundo. Mais cedo ou mais tarde a taxa de câmbio vai reagir. Quando um país tem um grande deficit em conta corrente, normalmente deprecia sua moeda, e desse modo toda a competitividade que você ganhou [contra ele] vai embora.
Não há outro modo para o mundo todo aumentar seu bem-estar do que subindo os salários de acordo com a produtividade. Esta será a mensagem do nosso próximo relatório sobre comércio e desenvolvimento, que será divulgado em setembro. Se você quiser ser bem-sucedido, externa e internamente, é o mais importante.
FOLHA - Como responde ao argumento de que Europa tem alto nível de desemprego porque os salários são altos e o mercado de trabalho é pouco flexível?
FLASSBECK - É totalmente errado. No caso da Alemanha, houve só um efeito positivo do "dumping" salarial, que foi encher os vizinhos com suas exportações. Internamente, a política foi um desastre. Não houve aumento dos investimentos nem do consumo.
FOLHA - Antes dos pacotes de estímulo para contornar a crise financeira de 2008, não havia um problema fiscal na maioria dos países europeus. Agora este é apontado como o maior problema. Por quê?
FLASSBECK - Isso é parte da batalha ideológica. As pessoas agora dizem que o governo é o problema, e não que resolveria todos os problemas, como se dizia há dois anos. Mas os que devem ser culpados por toda a confusão em que estamos são os mercados financeiros.
Os neoclássicos querem usar esse argumento [do problema fiscal] para voltar à batalha e talvez serem os vitoriosos no final. Então declaram os governos falidos, o que é falso: nenhum governo neste momento está falido, e todos os problemas podem ser resolvidos.
Os mercados dizerem que não querem dar dinheiro aos governos é ridículo, porque tiveram dinheiro dos governos, através dos bancos centrais, e agora se recusam a pagar.
FOLHA - Como explica o fato de o governo americano, que tem um deficit orçamentário de 10% do PIB, maior do que média europeia de 6,8%, não estar fazendo cortes, como os países europeus?
FLASSBECK - Os americanos têm em mente o cenário japonês de deflação e sabem que é perigoso se você corta muito em pouco tempo. Para mim a mensagem correta é: não corte muito em pouco tempo, e corte com cuidado, de acordo com a situação de cada país. Isso foi reconhecido por Dominique Strauss-Kahn [diretor-gerente do FMI]. Em entrevista à TV francesa, ele disse que nem todos podem cortar [gastos] ao mesmo tempo.
FOLHA - A missão do Fed, o banco central americano, é tanto de manter sob controle a inflação quanto de preservar o emprego. O BCE só tem meta de inflação. O senhor defende mudar isso?
FLASSBECK - Minha posição desde o início é a de que o mandato do Fed é mais razoável do que a do BCE. Manter a inflação baixa é relativamente simples, se você não se importa com o resto da economia. Mas, pelo menos nos últimos dias, o BCE mostrou certa flexibilidade [ao começar a comprar dívida dos países em crise].
FOLHA - Como avalia a reação popular ao aperto fiscal na Grécia e em outros países?
FLASSBECK - O sentimento mais disseminado nas ruas é que esses cortes estão errados. Há algo de verdade nisso. Cortes orçamentários, aumento de impostos e redução de salários combinados podem levar ao desastre.
Em médio prazo, deve haver uma mudança de direção nos Orçamentos, mas é preciso dar tempo ao tempo. Não é possível fazer do dia para a noite e têm que haver uma diferenciação entre os países com superavit externo, como a Alemanha, e os outros.
FOLHA - E como vê o argumento de que países como Grécia, Espanha e Portugal têm vivido nos últimos anos acima de seus meios?
FLASSBECK - E um país grande tem vivido abaixo dos seus meios, que é a Alemanha. Se isso for reconhecido, temos uma base para uma discussão razoável.
Entrevista da Folha Online.
Marcadores: Alemanha, capitalismo, crise econômica, Europa, União Européia
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