terça-feira, outubro 27, 2009

O poder da China

Do Estadão

”Poder da China irá além da economia”

China será o primeiro caso desde a Revolução Industrial em que o poder hegemônico não terá características ocidentais

Cláudia Trevisan, PEQUIM

Autor do livro When China Rules the World (Penguin Books, 2009), o jornalista e acadêmico britânico Martin Jacques acredita que a China assumirá em breve uma posição dominante no mundo, quando exercitará o “complexo de superioridade” desenvolvido nos 2 mil anos de história dinástica. Leia a entrevista concedida ao Estado, de Londres, por telefone:

Quão distantes nós estamos do momento em que a China vai “dominar” o mundo?

O título do livro não deve ser interpretado lateralmente. When China Rules the World (”Quando a China Dominar o Mundo”, em tradução livre) refere-se ao período em que a China será o país mais influente do mundo. Os EUA estão numa clara e irreversível trajetória de decadência e há dois fenômenos por trás deste processo. O primeiro é a mudança do centro de gravidade global, com a emergência do mundo em desenvolvimento, com países como China, Brasil e Índia. O segundo são os problemas domésticos americanos: endividamento, encolhimento da capacidade industrial e crise de sua posição financeira no que diz respeito ao dólar, a moeda usada como reserva de valor pelo mundo.Teremos cerca de 20 anos nos quais os EUA vão se ajustar a uma nova ordem da qual não serão mais o arquiteto, promotor ou beneficiário. Haverá a emergência de outros países, dos quais a China será o mais poderoso.

Em que um mundo influenciado pela China será diferente?

Nós ainda não temos a resposta, em parte porque estamos falando do futuro, mas também porque é algo desconhecido. Nunca vimos uma mudança como esta. Desde a Revolução Industrial britânica, a partir de 1780, o mundo foi dominado primeiro pela Europa e depois pelos EUA. Ou seja, sempre pelo Ocidente. Agora, vemos algo absolutamente distinto, que é a mudança de poder global em direção à Ásia, especificamente em direção à China e, secundariamente, em direção à Índia. Será a primeira vez em que o poder hegemônico não será ocidental.

Até agora, a emergência da China só tem sido discutida em termos econômicos. Isso significa que a China não terá influência política, cultural e intelectual?

Não, esta é uma visão estreita da realidade. Só discute-se a questão econômica porque as pessoas ainda acreditam que a China vai se ocidentalizar. Há uma visão generalizada de que existe apenas uma modernidade, que é a ocidental. Na verdade, a modernidade chinesa será, em vários aspectos, totalmente distinta da ocidental. Ela se manterá distinta, porque a modernidade é um reflexo da história e da cultura, e não apenas da concorrência tecnológica ou de mercado. A história moderna da China foi interpretada em termos ocidentais. Nós temos uma limitação intelectual na tentativa de entender o que a emergência da China significa.

O sr. menciona no livro o “complexo de superioridade” que ao longo da história imperial – que durou até 1911- marcou a relação da China com o mundo. Como este complexo pode influenciar o comportamento de uma China influente?

Este é o ponto crucial. Não é que outros países não tenham essa noção de superioridade, mas ela é bastante peculiar na China. À diferença de outros países populosos, como Índia, EUA, Brasil e Indonésia, 92% dos chineses se veem como integrantes de uma única raça, a dos chineses han. E isso em uma população de 1,3 bilhão de pessoas. A razão é que a China e a civilização chinesa têm uma existência extremamente longa, especialmente na parte centro-leste do país – o oeste veio muito mais tarde. As diferenças, as fronteiras e as distinções entre as pessoas diminuíram a ponto de todos verem a si mesmos como chineses han. Isso é combinado com uma longa história na qual a civilização chinesa foi particularmente bem sucedida. Os chineses viam a si mesmos como detentores da maior civilização do mundo e descreviam a China como a terra dos céus, o que deu a eles um forte sentimento de identidade e superioridade cultural. A China dinástica se via como o Império do Meio, o centro do universo, e desprezava os que estavam ao redor. A China era o centro do mundo e os demais, bárbaros. O que não sabemos é como esse sentimento de superioridade cultural vai se expressar no período de globalização. Mas sei que não será uma repetição da experiência ocidental. O sentimento de superioridade dos chineses é mais profundo do que era o dos europeus durante o período colonialista.

Recentemente, a China tentou impedir líderes globais de se encontrarem com o dalai lama ou com a líder uigur Rebiya Kadeer. Essa é uma prévia da maneira como a China irá se relacionar com o restante do mundo?

Acredito que sim, mas é necessário colocar essa questão em contexto. A China considera Xinjiang (província habitada pelos uigures) e o Tibete como partes de seu território e vê o relacionamento de qualquer país com pessoas hostis a seus interesses como uma interferência em seus assuntos internos. Ainda que a China não tenha sido expansionista no sentido europeu, ela se expandiu em seu próprio continente. Durante a dinastia Qing , Tibete e Xinjiang foram incorporados à China, o que dobrou o território do país. Os chineses han têm um conceito muito frágil de diferença cultural. Quando se trata de reconhecer diferenças religiosas, culturais e linguísticas, os chineses han têm uma mentalidade de assimilação, que é exatamente como a China foi construída, em um processo extremamente longo. Historicamente, a China viu-se como a terra dos céus e não interferiu no restante do mundo. Mas como uma China poderosa vai tratar um mundo definido pela diferença cultural? Isso me preocupa ainda mais do que a questão da democracia em si.

Qual será o impacto sobre valores liberais como liberdade individual, império da lei e liberdade de imprensa?

Nós estamos entrando em um mundo cultural complicado, no qual valores ocidentais vão ser contestados de uma nova maneira, com a emergência de novas culturas. Quando seu país e sua cultura são dominantes, os outros te copiam. O mundo vai ficar muito mais exposto à cultura chinesa, que é vastíssima e pode acrescentar elementos à experiência global. Eu estou deliberadamente separando as questões culturais dos temas políticos. Não acho que a noção de império da lei vai se aplicar na China da mesma maneira que no Ocidente. Mas eu acredito que a China será uma sociedade cada vez menos arbitrária. O que enfatizo é que a China tem um conceito muito diferente da relação entre Estado e sociedade e essa não é uma característica apenas do período comunista, mas do sistema chinês. O Estado ocupa uma posição diferente da que ocupa em sociedades ocidentais, ele desfruta de autoridade e legitimidade. O Estado chinês nunca teve sérios competidores, como a Igreja foi na Europa. O Estado chinês é extremamente competente. Muita gente fala sobre o Estado no Ocidente, mas não se discute a questão de sua competência. Acredito que nesse aspecto haverá um enorme interesse tanto de países em desenvolvimento quanto dos desenvolvidos de estudar a tradição do Estado chinês e sua competência.

Visto no blog do Luís Nassif.

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