História de Duas Repúblicas
FOI O REAL que redimiu a Nova República, da mesma forma que a velha só se consolidou com o saneamento financeiro de Campos Sales.
Nascida sob a inspiração da ordem e do progresso, a primeira República não teve em seus oito anos iniciais nem uma coisa nem outra, sob a sombra do encilhamento, da crise da dívida, das atrocidades de Floriano, do levante da Armada, da Revolta Federalista, dos massacres de Canudos. Já se ia esquecendo o sonho republicano quando a estabilização política e econômica criou condições para as realizações dos governos de Rodrigues Alves e de Afonso Pena, período de apogeu do regime.
Arco de tempo parecido acompanhou o conturbado começo da Nova República. Os funestos agouros despertados pelo precoce desaparecimento de Tancredo Neves confirmaram-se com a marcha batida para a hiperinflação após o insucesso do Plano Cruzado. Nem as generosas promessas da Constituição de 1988 conseguiram sobreviver ao confisco da poupança, aos escândalos e ao trauma do processo e do impedimento de Collor.
A determinação com que o presidente Itamar Franco priorizou a luta contra a inflação e a feliz escolha de Fernando Henrique Cardoso e seus colaboradores possibilitaram compensar tantos fracassos anteriores e resgatar a República. A consolidação da estabilidade e os aperfeiçoamentos institucionais no governo de Fernando Henrique fizeram o resto: abriram espaço que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva soube firmar e desenvolver.
Graças ao mérito de sua própria política e ao contexto externo propício, o atual governo acelerou o crescimento, expandiu o consumo de massa, ampliou programas sociais, elevou o prestígio do país no exterior. Não é exagero comparar alguns desses resultados aos alcançados no apogeu da República Velha.
Era nisso que eu pensava ao ouvir os oradores que se sucediam na sessão do Congresso Nacional em comemoração dos 15 anos do Plano Real. Celebrávamos uma vitória penosa, depois de muitas derrotas, no recinto que era naquele momento testemunha muda de outro persistente fracasso: o da incapacidade da autorreforma das instituições no espírito republicano de abolir privilégios e corrupção.
O paradoxo de Campos Sales é que, ao mesmo tempo em que saneava a economia, se acomodava à "política de governadores", desvirtuamento do ideal republicano e causa da perpetuação das oligarquias estaduais. Governar ficou mais fácil, mas, a médio prazo, a traição da República provocaria o movimento tenentista, as insurreições dos anos 20 e a Revolução de 30, pondo fim àqueles instantes fugazes de apogeu.
O presidente repete agora o erro de predecessores ao manipular os vícios do sistema e pô-los a serviço da ilusão de governabilidade sem consistência ou durabilidade. Pela origem popular e história de vida, ele, como ninguém, teve potencial tão decisivo para servir de modelo para educar o povo que o adora.
Será ingenuidade esperar que deixe de ser complacente com o pior de nossa herança e de endossar com o prestígio pessoal a corrupção que degrada as instituições, a impunidade que desmoraliza o povo?
Na véspera dos 25 anos da Nova República, se ele quiser, ainda tem tempo para assegurar vida longa a este rebrotar da democracia, encarnando os valores republicanos de austeridade e lisura legados por Tancredo Neves, Ulisses Guimarães e Mario Covas.
RUBENS RICUPERO, 72, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.
Texto publicado na Folha de São Paulo, de 19 de julho de 2009.
Marcadores: Brasil
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