Não esqueçamos o assassinato de Natalia Estemirova!
Vocês sabem tudo. Há muito tempo. Não há nenhum mistério. Natalia Estemirova foi eliminada porque ela combatia a mentira e a obscuridade do Estado, porque ela falava demais, porque ela investigava com muita precisão, porque ela acusava os mandatários dos crimes cotidianos na Chechênia, o ditador Kadyrov, os serviços secretos do exército russo, as diversas máfias que agem livremente, e seus chefes no Kremlin. As capturas extrajudiciais executadas por homens encapuzados, as casas de civis incendiadas em "punição", às vezes com seus moradores deliberadamente presos dentro delas, as tomadas de reféns que os serviços públicos devolvem com vida ou em pedaços em troca de dólares, as mulheres violentadas diante de seus maridos.
Vocês sabem tudo. Nenhuma novidade no martírio checheno desde a primeira guerra desencadeada por Moscou em 1994. Nenhuma novidade, além do fato de que a vitória russa foi declarada, que reina a paz putiniana, e que o terror continua.
Nenhuma novidade. Diante do cadáver de Natalia Estemirova, encontro desesperadamente as mesmas palavras e os mesmos pensamentos, as mesmas emoções e as mesmas lágrimas que tive na morte de minha amiga Anna Politkovskaia. Que me apresentou sua amiga, pedindo que a apoiasse para o prêmio Sakharov (ela recebeu a medalha Schuman). Elas se conheciam desde a primeira guerra, tendo ambas partido, intrépidas, em busca da verdade sobre um massacre de longa duração, que eliminou um em cada cinco civis. Ambas, cassandras de nossos tempos, falavam para as paredes, prevendo que o caos se estenderia ao Cáucaso (o que aconteceu), e que os acertos de contas mafiosos e oficiais ganhariam a própria Rússia (o que aconteceu).
A Chechênia? Um império minúsculo, mas um caso clássico para a humanidade: um milhão de habitantes antes da guerra, 200 mil mortos, 40 mil crianças mortas (e quantos órfãos?), uma capital devastada, cidades e vilarejos reduzidos a cinzas. E depois? A educação pelo medo e pela corrupção, ou como calar o povo. Não somente os chechenos, mas os russos e se possível nós, pacíficos cidadãos das nações democráticas. As fachadas reluzentes dos imóveis reconstruídos em Grozny mentem.
Nenhuma novidade no oeste; do lado da Europa tranquila e ainda próspera, já estão acostumados. A leste, os assassinatos se sucedem, se parecem e causam em nós algumas indignações logo esquecidas. É claro, não declararemos guerra - ainda que fria - contra a grande Rússia, então voltemos logo às atividades normais. Esse tipo de conduta de evasão provoca há muito tempo a zombaria da dupla que dirige o Kremlin, que não se constrange de caricaturar publicamente nossos representantes, e suscita a ironia entristecida dos dissidentes que compartilham de nosso gosto pela liberdade e democracia.
Serguei Kovaliev, o amigo de Sakharov, pergunta para quê servem os diplomatas e as chancelarias se a única alternativa é ou a guerra, ou uma complacência definitiva com o domínio das máfias e do despotismo? Para quê servem os ministros das Relações Exteriores se eles se mostram incapazes de planejar pressões econômicas, culturais ou diplomáticas que possam civilizar os tantos preocupantes vizinhos em nossas fronteiras?
No entanto, há uma novidade. Após o assassinato ainda não solucionado de Anna Politkovskaia, Ramzam Kadyrov, protegido de Putin suspeito de ser mandatário do crime, mandou erguer na capital um epitáfio de mármore negro em homenagem aos jornalistas e combatentes dos direitos humanos "assassinados por sua liberdade de expressão". Não, vocês não estão sonhando.
Após o assassinato de Natalia Estemirova, ele tornou pública sua indignação e se colocou como chefe de uma investigação para punir os culpados. Medvedev também. O ápice dessa piada foi atingido em Berlim: Angela Merkel pediu uma investigação, Medvedev prometeu uma, e depois a chanceler alemã e o presidente russo se abraçaram, prometendo um ao outro uma amizade industrial indestrutível. Belo festival de contratos fabulosos, somente dois dias após a descoberta de Natalia, com duas balas na nunca, à beira de uma estrada.
Kadyrov sabe punir, e até gosta disso, é o que dizem. Punir quem? Seu primeiro "ato de justiça" diz muito sobre isso: ele está processando Oleg Orlov, fundador do Memorial [organização de direitos humanos] junto com Sakharov e companheiro de luta de Natalia Estemirova. Sim, Medvedev, o clone "bonzinho" de Putin, vai conduzir uma investigação para persuadir o mundo inteiro. Ele encontrou os assassinos de Anna? Ou os de Stanislav Markelov e de Anastasia Barburova? Ou os da multidão de anônimos? Ele entregou à Grã-Bretanha o assassino de Alexandre Litvinenko? Não! Ele comparece à Duma e faz zombarias na televisão. Ele jura que fará o impossível; ele, que acaba de promover a caça aos "antipatriotas", ou seja, aqueles que estudam os crimes de Stálin durante a Segunda Guerra Mundial, antes e depois.
Orwell revelou a novilíngua moderna: "Guerra é paz, escravidão é liberdade". Ele mostrava esses paradoxos particulares da propaganda totalitária. Progresso estranho: as democracias agora se empenham para não ficarem para trás de uma hipocrisia.
Em 17 de julho, uma caminhonete amarela transportou o corpo de Natalia, cercada de seus amigos, os melhores, os mais corajosos e os mais audaciosos de Grozny. Ela subiu lentamente a avenida Putin, a "Champs-Elysées" da capital, reconstruída e batizada com o nome de seu carrasco. Essa "avenida Putin" onde Natacha nunca andou quando estava viva, rejeitando a injúria cínica feita a seu povo dizimado, forçado a uma completa humilhação.
Em Moscou, prestando homenagem a Natacha, nova mártir da verdade, ao lado das mentes inconformistas do Memorial, estava a incansável Ludmila Alexeyevna, 82, figura da dissidência antissoviética. Em Paris, durante uma breve cerimônia na fonte Saint-Michel, abracei Natalia Gorbanevskaia, a poeta que protestou, com seu bebê nos braços, na praça Vermelha em agosto de 1968, contra os tanques russos que esmagavam uma Praga insurgente. Ela fora enviada a um hospital psiquiátrico.
Inabaláveis mulheres de fibra, vocês são mais determinadas do que toda essa selvageria, mais fortes que nossos retraimentos. Vocês conhecem o orgulho dos povos caucasianos, a dignidade da cultura russa que sempre foi de resistência, e se nossa humanidade tem um rosto, é o de vocês. Anna e Natacha, obrigado.
*André Glucksmann é filósofo.
Tradução: Lana Lim
Texto de André Glucksmann, no Le Monde, reproduzido no UOL.
Vocês sabem tudo. Nenhuma novidade no martírio checheno desde a primeira guerra desencadeada por Moscou em 1994. Nenhuma novidade, além do fato de que a vitória russa foi declarada, que reina a paz putiniana, e que o terror continua.
Nenhuma novidade. Diante do cadáver de Natalia Estemirova, encontro desesperadamente as mesmas palavras e os mesmos pensamentos, as mesmas emoções e as mesmas lágrimas que tive na morte de minha amiga Anna Politkovskaia. Que me apresentou sua amiga, pedindo que a apoiasse para o prêmio Sakharov (ela recebeu a medalha Schuman). Elas se conheciam desde a primeira guerra, tendo ambas partido, intrépidas, em busca da verdade sobre um massacre de longa duração, que eliminou um em cada cinco civis. Ambas, cassandras de nossos tempos, falavam para as paredes, prevendo que o caos se estenderia ao Cáucaso (o que aconteceu), e que os acertos de contas mafiosos e oficiais ganhariam a própria Rússia (o que aconteceu).
A Chechênia? Um império minúsculo, mas um caso clássico para a humanidade: um milhão de habitantes antes da guerra, 200 mil mortos, 40 mil crianças mortas (e quantos órfãos?), uma capital devastada, cidades e vilarejos reduzidos a cinzas. E depois? A educação pelo medo e pela corrupção, ou como calar o povo. Não somente os chechenos, mas os russos e se possível nós, pacíficos cidadãos das nações democráticas. As fachadas reluzentes dos imóveis reconstruídos em Grozny mentem.
Nenhuma novidade no oeste; do lado da Europa tranquila e ainda próspera, já estão acostumados. A leste, os assassinatos se sucedem, se parecem e causam em nós algumas indignações logo esquecidas. É claro, não declararemos guerra - ainda que fria - contra a grande Rússia, então voltemos logo às atividades normais. Esse tipo de conduta de evasão provoca há muito tempo a zombaria da dupla que dirige o Kremlin, que não se constrange de caricaturar publicamente nossos representantes, e suscita a ironia entristecida dos dissidentes que compartilham de nosso gosto pela liberdade e democracia.
Serguei Kovaliev, o amigo de Sakharov, pergunta para quê servem os diplomatas e as chancelarias se a única alternativa é ou a guerra, ou uma complacência definitiva com o domínio das máfias e do despotismo? Para quê servem os ministros das Relações Exteriores se eles se mostram incapazes de planejar pressões econômicas, culturais ou diplomáticas que possam civilizar os tantos preocupantes vizinhos em nossas fronteiras?
No entanto, há uma novidade. Após o assassinato ainda não solucionado de Anna Politkovskaia, Ramzam Kadyrov, protegido de Putin suspeito de ser mandatário do crime, mandou erguer na capital um epitáfio de mármore negro em homenagem aos jornalistas e combatentes dos direitos humanos "assassinados por sua liberdade de expressão". Não, vocês não estão sonhando.
Após o assassinato de Natalia Estemirova, ele tornou pública sua indignação e se colocou como chefe de uma investigação para punir os culpados. Medvedev também. O ápice dessa piada foi atingido em Berlim: Angela Merkel pediu uma investigação, Medvedev prometeu uma, e depois a chanceler alemã e o presidente russo se abraçaram, prometendo um ao outro uma amizade industrial indestrutível. Belo festival de contratos fabulosos, somente dois dias após a descoberta de Natalia, com duas balas na nunca, à beira de uma estrada.
Kadyrov sabe punir, e até gosta disso, é o que dizem. Punir quem? Seu primeiro "ato de justiça" diz muito sobre isso: ele está processando Oleg Orlov, fundador do Memorial [organização de direitos humanos] junto com Sakharov e companheiro de luta de Natalia Estemirova. Sim, Medvedev, o clone "bonzinho" de Putin, vai conduzir uma investigação para persuadir o mundo inteiro. Ele encontrou os assassinos de Anna? Ou os de Stanislav Markelov e de Anastasia Barburova? Ou os da multidão de anônimos? Ele entregou à Grã-Bretanha o assassino de Alexandre Litvinenko? Não! Ele comparece à Duma e faz zombarias na televisão. Ele jura que fará o impossível; ele, que acaba de promover a caça aos "antipatriotas", ou seja, aqueles que estudam os crimes de Stálin durante a Segunda Guerra Mundial, antes e depois.
Orwell revelou a novilíngua moderna: "Guerra é paz, escravidão é liberdade". Ele mostrava esses paradoxos particulares da propaganda totalitária. Progresso estranho: as democracias agora se empenham para não ficarem para trás de uma hipocrisia.
Em 17 de julho, uma caminhonete amarela transportou o corpo de Natalia, cercada de seus amigos, os melhores, os mais corajosos e os mais audaciosos de Grozny. Ela subiu lentamente a avenida Putin, a "Champs-Elysées" da capital, reconstruída e batizada com o nome de seu carrasco. Essa "avenida Putin" onde Natacha nunca andou quando estava viva, rejeitando a injúria cínica feita a seu povo dizimado, forçado a uma completa humilhação.
Em Moscou, prestando homenagem a Natacha, nova mártir da verdade, ao lado das mentes inconformistas do Memorial, estava a incansável Ludmila Alexeyevna, 82, figura da dissidência antissoviética. Em Paris, durante uma breve cerimônia na fonte Saint-Michel, abracei Natalia Gorbanevskaia, a poeta que protestou, com seu bebê nos braços, na praça Vermelha em agosto de 1968, contra os tanques russos que esmagavam uma Praga insurgente. Ela fora enviada a um hospital psiquiátrico.
Inabaláveis mulheres de fibra, vocês são mais determinadas do que toda essa selvageria, mais fortes que nossos retraimentos. Vocês conhecem o orgulho dos povos caucasianos, a dignidade da cultura russa que sempre foi de resistência, e se nossa humanidade tem um rosto, é o de vocês. Anna e Natacha, obrigado.
*André Glucksmann é filósofo.
Tradução: Lana Lim
Texto de André Glucksmann, no Le Monde, reproduzido no UOL.
Marcadores: assassinato de defensores de direitos humanos, Chechênia, crime organizado, Rússia, violação de direitos humanos
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