Do "American dream" ao pesadelo
Do "American dream" ao pesadelo
JORIO DAUSTER
VENCIDOS OS duros anos da Grande Depressão e da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos conceberam o "American dream", em que se entrelaçavam os ideais de prosperidade e igualdade.
Seis décadas depois, o país vive uma crise de proporções imprevisíveis, mas, antes disso, com um quarto da renda concentrada em 1% da população, o país já exibia os piores índices de justiça social entre todas as nações industrializadas.
São complexas as razões que levaram do sonho ao pesadelo, mas duas tendências surgidas na década de 1970 explicam o essencial do fenômeno: a "financeirização" da economia e o predomínio da filosofia neoliberal do Partido Republicano.
Os dois choques do petróleo, exigindo a circulação de imensos recursos, fortaleceram e globalizaram o sistema bancário. Desde então, as instituições financeiras suplantaram em relevância econômica e política os agentes da "economia real", forçando-os a conformarem-se às exigências dos mercados de capital.
Com o tempo, os bancos tradicionais estenderam suas atividades a outros campos, enquanto surgiam novos atores (bancos de investimento, fundos de participação acionária e fundos de hedge) menos regulados.
No quadrante político-ideológico, iniciam-se com Nixon, em 1969, quatro décadas de domínio do Partido Republicano e de seu ideário conservador. A partir da administração Reagan (1981-1989), as teses neoliberais ganharam impulso, com o desmonte dos sindicatos e de várias estruturas do "welfare state" identificadas com o Partido Democrata.
Tão forte haviam se tornado tais tendências que Bill Clinton, convivendo durante 6 dos seus 8 anos no poder com um Congresso de maioria republicana, patrocinou em 1999 a maior desregulamentação bancária da história norte-americana.
Ao mesmo tempo produto e motor dessas transformações, implantou-se no país um mandarinato que, como quase toda oligarquia, possui um componente dinástico -basta ver como Bush pai abriu para Bush filho as portas de Yale e da Casa Branca. Mas a maior força da casta dirigente está no seu caráter meritocrático, na capacidade de cooptar os melhores cérebros até quando oriundos do exterior. Outra feição notável é a porta giratória que liga instituições financeiras e corporações industriais às universidades, ao governo e ao Congresso -e os mandarins, transitando entre esses centros de poder, acumulam experiências diversificadas enquanto garantem seu pecúlio.
Sob a forma de salários, bônus e opções de ações milionárias, esse grupo de privilegiados apropriou-se de um quinhão crescente da riqueza, como se vê pelo fato de que o índice Gini (tanto maior quanto pior a distribuição da renda) subiu nos EUA de 37,6 em 1947 para 46,3 em 2007.
Aliás, isso significa que, mantidas as tendências atuais, o Brasil, que saiu de 60 em 1990 para 53 em 2007, poderá em breve exibir uma distribuição mais justa que a dos EUA.
Entretanto, como cabia impedir que os 90% da população que agora só detinham metade da renda nacional se conscientizassem de que estavam sendo excluídos do festim, os oligarcas utilizaram três instrumentos: mantiveram baixos os preços da gasolina, evitando qualquer taxação que reduzisse a atratividade dos SUVs beberrões, estimularam o consumismo pelo uso descontrolado dos cartões de crédito, fazendo com que a taxa de poupança pessoal se tornasse negativa, e congelaram por longo tempo os juros em níveis artificialmente baixos, estimulando irresponsavelmente a expansão do crédito imobiliário.
A combinação desses fatores está na origem da grave crise em cujo bojo se deu a eleição de Obama, primeiro sinal de reação popular diante das crescentes distorções distributivas.
Prova disso é que o candidato democrata visou a classe média ao prometer não só o resgate dos valores morais mas também a redução dos impostos sobre os segmentos de menor renda. Igual sinalização foi feita quanto à extensão dos serviços de saúde a todos os cidadãos e à recuperação do setor educacional.
Contudo, não será fácil vencer a resistência dos oligarcas, pois o próprio Obama não pôde dispensar a colaboração de muitos deles. Por exemplo, seu principal assessor econômico, Larry Summers, passou por Harvard, Banco Mundial, Tesouro e pela firma de investimento D.E. Shaw (onde em dois anos ganhou US$ 5,2 milhões para trabalhar uma tarde por semana).
O anúncio de que o governo controlará as remunerações dos executivos dos bancos por ele ajudados provocou uma corrida para repagarem o auxílio recebido no auge da crise. Alguns, como Goldman Sachs, escaparam das novas regras moralizadoras, porém outros, como Citigroup, tiveram de se dobrar a essas limitações.
Mas a luta de Obama apenas começou -e o "American dream" nunca esteve tão longe de se realizar.
JORIO DAUSTER , 71, embaixador, consultor de empresas e tradutor, é presidente do Conselho de Administração da Brasil Ecodiesel. Foi presidente da Companhia Vale do Rio Doce (1999 a 2001) e do Instituto de Estudos Políticos e Sociais (2003 e 2006).
Texto publicado na Folha de São Paulo, de 22 de julho de 2009.
Marcadores: American Way of Life, economia, Estados Unidos
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