terça-feira, agosto 25, 2009

Após oito anos de intervenção internacional, a discriminação das afegãs é semelhante à da época do Taleban

As mulheres afegãs são vítimas de uma mentalidade medieval. Não existem leis nem justiça, só a tradição e a vontade inapelável de homens embrutecidos por 30 anos de guerras, que se amparam no nome de Deus para exercer a violência. Em muitas áreas rurais raspa-se o cabelo das meninas durante a celebração dos casamentos, na esperança de que sua feiúra as salve de uma violação, muitas vezes por parte de um familiar. Oito em cada dez mulheres sofrem violência doméstica e 60% são obrigadas a se casar antes dos 18 anos, segundo dados da ONU e da Associação Revolucionária das Mulheres do Afeganistão. O presidente Hamid Karzai, financiado pela comunidade internacional - incluindo a Espanha -, aprova leis que permitem que os maridos xiitas castiguem suas esposas deixando-as sem comida se estas não os satisfizerem sexualmente.

"A burqa não é o problema, se é ela quem decide usá-la", afirma Fatana Ishaq Gailani, prêmio Príncipe de Astúrias da Concórdia em 1998 e presidente de uma ONG que defende seus direitos. "O grande problema das mulheres afegãs é o tratamento desumano que recebem. Ninguém as protege da violência. Nem o governo nem a comunidade internacional fizeram nada em oito anos para mudar a situação. É impossível condenar alguém por violação; os juízes liberam os acusados depois do pagamento de um suborno. A mulher afegã quase não tem acesso à educação, e nas áreas rurais vive em condições de extrema pobreza."

Faima tem 23 anos, é de Cabul e teve sorte: conseguiu terminar o ensino secundário, algo vetado a 95% das meninas que iniciam a escola. Aguarda sua vez em uma sala do centro ortopédico que o Comitê Internacional da Cruz Vermelha tem na capital desde 1988. É para seu filho Rahnan, que tem uma malformação no pé. "Não gosto da burqa. Sinto-me em uma prisão e embaixo faz muito calor. O hijab [lenço] é a peça que minha religião exige e que eu uso na cabeça. Muita gente pensa assim em Cabul, mas sei que nas províncias é diferente. Lá muitas mulheres têm de usar a burqa à força."

Salima é uma delas. Vem da província de Takhan, no norte, e usa a burqa erguida sobre o rosto. No início se nega a conversar. Diz que precisa da autorização de seu marido. Com a ajuda de uma das fisioterapeutas, concorda, cobrindo a boca com o tecido: "Ninguém me obriga a usá-la. Embaixo dela me sinto mais segura. Não gosto que os homens me olhem na rua".

Malalai Joya tem 35 anos e é uma das 64 deputadas do Parlamento, mas não pode ir ao seu assento, porque foi expulsa apesar de a lei não contemplar essa possibilidade. Está ameaçada de morte e vive na clandestinidade. Em seu caso, a burqa é um seguro de vida. "A maioria de nossos políticos e parlamentares são narcotraficantes e criminosos de guerra que deveriam ser detidos e levados ao Tribunal Internacional de Justiça de Haia", explica em um de seus refúgios. Opiniões como esta, que ela expressou na Loya Jirga, a Grande Assembléia, em 2003, a colocaram na mira de muitas armas.

"A situação da mulher no Afeganistão é um inferno", prossegue. "Muitas optam pelo suicídio para escapar da violação legalizada na qual se transformaram muitos casamentos. Não podem sair sem autorização de seus maridos. Nem estudar. Eu vivo em um país de misóginos que temem a outra metade. Dizem que somos 25% dos deputados, mas é mentira: as mulheres mal podem falar no Parlamento, são insultadas e atacadas. A mim, por exemplo, tentaram violar. As coisas não mudaram desde que os taleban se foram e o país foi ocupado por tropas estrangeiras." Malalai mostra papéis e fotografias; é uma mulher dedicada a uma causa. "Sei que um dia me matarão. Já tentaram cinco vezes, mas não vou me render", diz.

Sdika tem 12 anos. Levanta-se às 6 da manhã e uma hora depois entra no colégio, mas às 10 tem de voltar para casa para ajudar a fazer o almoço. Gostaria de ser pintora. Desenha jardins e casas grandes. Devem ser seus sonhos de uma Cabul envolta em uma neblina de poeira e areia que machuca os olhos. Diz que não gosta da burqa. "Não a vestirei enquanto não me casar. Depois, dependerá do que meu marido decidir."

A deputada Fawzeja Kofi se queixa de que os candidatos à presidência não deram atenção aos problemas das mulheres. Também acredita que a burqa não é o problema, mas a representação do problema. Acredita que os jovens e as novas tecnologias romperão o cerco. "Pouco mudou na qualidade de vida das mulheres desde a saída dos taleban. Aqui se mata a mulher por ser mulher. Só em Cabul há 60 mil viúvas que devem carregar o peso da casa e que não têm direitos. A única via é a educação, que 85% de mulheres analfabetas aprendam a ler e a exigir seus direitos. Temos um governo corrupto que a única coisa que fez foi legalizar a tradição. Vivemos em uma cultura da impunidade que nada tem a ver com a xariá [lei islâmica]."

Ramón Lobo
Enviado especial a Cabul (Afeganistão)

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

Texto do El País, no UOL Notícias.

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