terça-feira, julho 21, 2009

Fisk: Irã dos aiatolás é um experimento político no coração da "Xia"

por Robert Fisk, no The Independent

A imagem mais nauseabunda de toda a tragédia Iraniana não mostrava corpos ensanguentados de manifestantes em Teerã; foi imagem distribuída pela Reuters, do ex-príncipe ex-coroado Reza Pahlavi, "tentando controlar as lágrimas" em Washington, e declarando que Neda Agha Sultan, a jovem morta pelos assassinos comandados por Ahmadinejad, semana passada, "estará para sempre em meu bolso". Santo deus! No bolso dele! "Juntei Neda à lista das minhas filhas" – disse ao mundo o filho do falecido Xá, brutal e impiedoso.

Nem é preciso dizer que o filho da "Luz dos Arianos" não juntou à "lista de suas filhas" as muitas, as milhares de mulheres também inocentes e jovens torturadas até a morte pela sádica polícia secreta de seu pai.

Em 1979, vi um homem que torturou uma mulher amarrada a uma chapa de metal e posta sobre bicos acessos de um fogão a gás. Chamava-se Mohamed Sadafi, levantador de pesos e lutador profissional. "Você matou minha filha", o pai daquela infeliz mulher gritou para Sadafi, à minha frente. "A pele queimou por partes, até ela ficar paralisada. Pode-se dizer que foi assada", Sadafi respondeu ao homem, sem explicar por que a moça ter-se-ia enforcado depois de sete meses de cárcere. Mas "não havia nem lençóis na prisão, nos quais ela pudesse enforcar-se" – o pai ainda berrou, furioso. Ah, sim, havia, sim, Sadafi respondeu. "Eu vi muito bem as notas da lavanderia da prisão de Evin."

Não, não acho que Reza Shah tenha posto aquela moça "no bolso". Mas tampouco a moça foi salva pelos clérigos xiitas, que se diz que apoiaram o golpe anglo-americano original contra Mohammed Mossadeq, líder democraticamente eleito no Irã em 1953. Ao mesmo tempo em que avançava o golpe, um alto clérigo de Teerã foi mandado a Qom para persuadir o aiatolá daquela época, Sayed Mohammad Hossein Boroujerdi, a lançar uma fatwa, conclamando a uma guerra santa contra os comunistas do Partido Tudeh, aos quais Mossadeq aliara-se. Dizia-se que um certo Ruhollah Khomeini fora encarregado de ordenar a Boroujerdi que tomasse essas providências.

A própria análise da CIA sobre o golpe – o qual, é claro tem sido lembrado cada vez mais entusiasticamente por Ahmadinejad e seus asseclas durante as últimas duas semanas – inclui uma entrevista pós-golpe entre Kermit Roosevelt, chefe da CIA em Teerã, e Winston Churchill, que vivia seus últimos meses como primeiro-ministro inglês. "Foi momento muito tocante" – diz o relatório da CIA sobre o encontro Roosevelt-Churchill.

"O primeiro-ministro parecia não estar em boas condições físicas e de saúde (...) com muita dificuldade para ouvir; com problemas ocasionais para articular palavras; e com o que parecia ser uma dificuldade de ver à sua esquerda. Apesar disso, mostrou grande entusiasmo pela operação. Chegou a manifestar desejo de "ter alguns anos a menos", e poder servir sob as ordens de Roosevelt: "Nossa operação deu-nos inesperada e maravilhosa oportunidade de modificar todo o panorama no Oriente Médio."

É exatamente o mesmo discurso, explícito, de Condoleezza Rice. Lembram as "dores do parto" de que Condi falava, do parto do qual nasceria um novo Oriente Médio, quando os libaneses afogavam-se em sangue, atacados pelas bombas israelenses em 2006? Pois "todo o panorama no Oriente Médio", de Churchill, só mudou, mesmo, em 1979.

Nesse caso... Que fim levou a famosa revolução? Foi realmente um florescente retorno aos valores básicos do islamismo xiita, volta aos anos dourados de Ali e Hussein, quando a autoridade islâmica jamais poderia ser imposta ao mesmo tempo que um governo secular? Essa é a narrativa que está sendo implantada agora em Teerã. Essa é a história em que o Aiatolá Khamenei diz que acredita; mediante a qual o aiatolá Khomeini – apesar dos conselhos que deu a Boroujerdi em 1953 – levou o Irã de volta à pureza das raízes islâmicas xiitas, segundo as quais ninguém deve tentar separar o poder religioso e o poder secular.

Por extraordinária coincidência, acaba de ser publicado mais um livro do professor Nader Hashemi da Universidade de Denver, e que, provavelmente, é hoje o livro mais absolutamente necessário para que se entendam os dramáticos eventos no Irã.

Reverente aos terríveis deveres acadêmicos, o prof. Hashemi deu ao livro um título que mais parece aviso de "NÃO LEIA": Islam, Secularism, and Liberal Democracy: Toward a Democratic Theory for Muslim Societies. Esqueça o título. O livro é leitura absolutamente indispensável e vale cada página. (...)

No livro está citada uma fala de Khomeini, de quando vivia exilado na cidade iraqueana de Najaf, em 1970. "Esse slogan da separação entre religião e política e a exigência de que os sábios islâmicos não intervenham nos negócios sociais e políticos são ideias formuladas e propagandeadas pelos imperialistas; só os infieis e maus muçulmanos as repetem. Quando, no tempo do Profeta, separaram-se religião e política? Algum dia houve separação, os clérigos de um lado e, do lado oposto, um grupo de políticos e líderes?"

Outra vez, em 1999, o aiatolá Abolghassem Khazali, um duro ex-membro do Conselho dos Guardiões, insistiu que "quando um juiz como o aiatolá Mesbah Yazdi" – hoje apoiador dedicado e próximo de Ahmadinejad, com forte desejo de suceder Khamenei – "pronuncia-se sobre algo, todos temos de responder 'Devo ouvir e devo obedecer'. Se há algum perigo, virá sempre dos slogans da 'sociedade civil'. A situação hoje chegou a tal ponto, que se debate a existência de deus nas universidades".

Não surpreende que a Universidade de Teerã tenha sido invadida e violada pela milícia Basij, semana passada. Não surpreende que a tendência 'secular' de Mir-Hossein Mousavi pareça hoje tão perigosa para o regime.

Mas, como Hashemi observa – e aqui está o ponto mais frágil do regime Iraniano – "Há consenso quase completo de que a doutrina Khomeini, do governo pelos juízes islâmicos, marcou rompimento significativo na tradição xiita, no que tenha a ver com o relacionamento entre religião e política. Importantes aiatolás, no mundo xiita (inclusive no Irã, naquele momento), opuseram-se fortemente à doutrina política de Khomeini, considerada inovação e rompimento radical com o papel político dos religiosos na sociedade política, papel tradicionalmente muito discreto."

Então é isso. Khomeini inventou o chamado "velayat-e faqih" (governo do líder religioso); na história do islamismo jamais houve qualquer tipo de República Islâmica. O Irã dos aiatolás é um experimento político. Um experimento que poderá ser continuado ou interrompido. As duas últimas semanas sugerem que a República Islâmica terá de trabalhar muito, se quiser sobreviver.

Enquanto isso, lembremos o que disse Mossadeq, há 46 anos: "Nenhuma nação jamais chegará a lugar algum conduzida por ditadores."

O artigo original, em inglês, pode ser lido aqui.

Este texto veio do Vi o Mundo.


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