Libertados de Guantánamo, muçulmanos uighurs relaxam nas Bermudas
Libertados de Guantánamo, muçulmanos uighurs relaxam nas Bermudas
Erik Eckholm
Em Saint George (Bermudas)
Quase sete anos após terem chegado a Guantánamo acorrentados, acusados de serem combatentes inimigos, e quatro dias depois do voo inesperado, feito durante a madrugada, para as Bermudas, quatro muçulmanos uighurs aproveitam a nova situação de liberdade em que se encontram para relaxar. Eles mostram-se gratos pelos apertos de mão oferecidos por vários moradores e maravilhados com a beleza serena desta ilha agradável com paisagem de cartão postal.
Usando bermudas cáqui e camisas polo recém-compradas, os quatro homens robustos, membros de uma aguerrida minoria étnica do oeste da China, poderiam muito bem passar desapercebidos em meio à população, se não fosse pelas barbas cerradas. Cheirando flores de hibisco, aproveitando a liberdade para passear pelas ruas e portos de belas paisagens, eles manifestam surpresa devido à boa sorte que possibilitou que viessem parar aqui após um cativeiro que incluiu mais de um ano de confinamento em solitárias.
"Ontem fui nadar no mar pela primeira vez. Foi o dia mais feliz da minha vida", diz Salahidin Abdulahat, 32.
Enquanto almoçavam peixe e batatas fritas no domingo, eles elogiaram as Bermudas pela coragem frente às potenciais pressões da China. Uma coragem que, segundo eles, poderosos países europeus foram incapazes de demonstrar.
Eles fazem parte de um grupo maior de uighurs que fugiram da perseguição chinesa contra os muçulmanos no oeste da China e passaram parte do ano de 2001 em um campo de refugiados uighurs no Afeganistão. Eles fugiram, aparentemente desarmados, quando os norte-americanos bombardearam o campo. Mais tarde foram denunciados às autoridades por moradores de vilas paquistanesas em troca de recompensas pagas pelos Estados Unidos.
Os quatro que foram trazidos para cá - assim como os outros 13 uighurs que ainda estão em Guantánamo, mas que deverão partir em breve para outros países - foram inocentados por autoridades e tribunais norte-americanos, que afirmaram que eles não pegaram em armas contra os Estados Unidos e nem possuem vínculos com o terrorismo global.
Mas as propostas para transferi-los como residentes para os Estados Unidos provocaram um furor político que o governo Obama não deseja agravar.
No domingo os quatro exibiram uma surpreendente ausência de ressentimento contra os Estados Unidos, e afirmaram - conforme fizeram durante os interrogatórios anos atrás em Guantánamo - que nunca foram anti-americanos e que só desejam viver as suas vidas tranquilos.
"Antes perguntávamos por que os norte-americanos estavam fazendo aquilo conosco", disse Abdulahat. "Mas agora viemos parar aqui neste lugar belíssimo. Não queremos olhar para trás, e não nutrimos nenhum ressentimento em relação aos Estados Unidos".
Embora dois deles falem um pouco de inglês, todos comunicaram-se em uighur, auxiliados por uma mulher uighur que em Guantánamo prestou serviços de tradução e interpretação para eles e os seus advogados.
A transferência deles para esta colônia britânica, conhecida pelo iatismo e pelas casas pintadas com tons pastéis, foi um pequeno passo rumo ao objetivo do governo norte-americano de fechar Guantánamo até janeiro. A iniciativa criou uma tempestade política para o primeiro-ministro bermudense, que, segundo dizem alguns, agiu de forma autocrática, e irritou o Departamento de Relações Exteriores britânico, que afirma não ter sido consultado de forma apropriada.
Mas a maioria das objeções aqui dizem respeito ao caráter secreto do acordo, e não a temores quanto à possibilidade de que ex-terroristas andem soltos pela ilha, ao contrário da reação de certas pessoas nos Estados Unidos. Os detalhes do acordo não foram revelados.
Embora alguns moradores menos afluentes tenham dito que acham injusto oferecer emprego e cidadania a pessoas que o próprio Estados Unidos recusou-se a aceitar, muitos outros deram de ombros e manifestaram orgulho pela hospitalidade bermudense. Quando os homens saem da casa à beira-mar na qual estão morando temporariamente até obterem empregos e descobrir o que farão a seguir, os habitantes da região muitas vezes vêm até eles para dar-lhes um aperto de mão e desejar-lhes sucesso. Os quatro dizem que ficam profundamente comovidos com isso.
Xinjiang - a terra natal deles, uma região preponderantemente muçulmana no oeste da China na qual muitos moradores sofrem com o regime chinês - não tem mar. Muitos dos detentos uighurs viram o oceano - ainda uma presença distante e misteriosa - pela primeira vez na vida através das cercas de Guantánamo.
Agora eles podem entrar no mar. Khaleel Mamut, 31, diz que foi pescar de barco no sábado e pegou um peixe pela primeira vez na vida. "Fiquei muito alegre", diz ele. "Você simplesmente joga o anzol na água e pega um peixe". Quando lhe dizem que a pescaria nem sempre resulta em um sucesso tão rápido, um deles brinca, sugerindo que os peixes estão participando do comitê de boas vindas das Bermudas.
Eles têm promessas de vistos de trabalho e, em talvez cerca de um ano, também de cidadania, de acordo com o advogado norte-americano. Isso permitirá que tirem passaportes e tenham direito a viajar.
"A ideia é que eles se tornem bermudenses", afirma o general da reserva Glenn W. Brangman, que foi incumbido pelo governo de ajudar os recém-chegados e que os saúda com abraços apertados. Segundo o atual acordo, a Bermuda não permitirá que os quatro visitem os Estados Unidos. Não se sabe se eles alguns dias poderão pisar em território estadunidense, mesmo que obtenham a cidadania bermudense.
Os quatro afirmam que não querem nada com a China, que exigiu a repatriação dos quatro e que provavelmente os colocaria na prisão.
Durante os interrogatórios em Guantánamo, os quatro e os outros uighurs disseram que foram parar no Afeganistão após terem fugido da perseguição chinesa, e que desejavam trabalhar pela "libertação" do povo uighur - uma atitude que é tida como traição pela China.
Muitos disseram que lhes mostraram como disparar um fuzil Kalashnikov quando estavam no acampamento uighur, mas que não contavam com nenhum treinamento real, nada sabiam a respeito da Al Qaeda, não combateram os norte-americanos e não consideravam estes seus inimigos.
Os quatro faziam parte de um grupo maior que estava escondido em cavernas nas montanhas perto de Jalalabad depois que o campo de refugiados em que se encontravam foi bombardeado pelas forças norte-americanas no final de 2001. Famintos, assustados e desarmados, eles seguiram para o Paquistão, onde os moradores das vilas os entregaram às autoridades em troca de recompensas pagas pelos norte-americanos.
Após terem passado anos em cativeiro, as autoridades norte-americanas concluíram que eles não podiam ser considerados combatentes inimigos. Em outubro do ano passado um tribunal ordenou que eles fossem libertados. Porém, a libertação foi adiada porque não se conseguia encontrar um país que os aceitasse, e uma outra determinação de um tribunal proibia que eles fossem transferidos para os Estados Unidos.
Em 2007, cinco uighurs foram mandados para a Albânia. Há negociações em andamento para o envio de todos ou a maioria dos 13 uighurs restantes para a ilha de Palau, no Oceano Pacífico.
Na manhã da última quinta-feira os bermudenses souberam que os quatro tinham chegado antes do alvorecer, por meio do primeiro-ministro Ewart F. Brown, que negociou sigilosamente com os norte-americanos, e que disse que fez "a coisa certa". Os oponentes, que já consideravam Brown autocrático, pediram um voto de desconfiança contra o primeiro-ministro, algo que poderá ocorrer dentro de semanas.
Ao mesmo tempo, o governo britânico daqui manifestou o seu descontentamento por não ter sido informado sobre o acordo, e o Departamento de Relações Exteriores britânico reclamou com Washington.
O destino de Brown pode ser incerto, mas ao se depararem com os quatro homens, muitos residentes os receberam bem.
Washington encontra-se em uma situação delicada no que diz respeito aos uighurs. Os Estados Unidos buscaram o apoio da China na suas iniciativas anti-terroristas após os atentados de 11 de setembro de 2001. Os norte-americanos rotularam de terrorista um obscuro grupo pró-independência uighur e em 2002 permitiram que autoridades chinesas entrassem em Guantánamo para interrogar os uighurs presos. Os quatro homens que encontram-se aqui disseram que o interrogatório foi a pior parte da prisão em Guantánamo, já que os agentes chineses os questionaram durante horas, sem que ninguém lhes oferecesse comida, e fizeram ameaças a eles e às suas famílias.
Com base nos relatos dos homens, fica claro que a presença deles no Afeganistão estava vinculada à sua animosidade contra a China. Não existe qualquer indicação de que em 2001 eles pretendiam participar de uma jihad global.
Agora, apesar dos protestos da China, eles estão sendo soltos e enviados para outros países.
Mas, no domingo, enquanto pensavam no inesperado rumo tomado pelas suas vidas, os quatro disseram com um certo prazer que todos esses problemas parecem agora distantes.
Tradução: UOL
Texto do The New York Times, no UOL Notícias.
Marcadores: China, Estados Unidos, Guantánamo, uighur, uighurs
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