Acerca de nomes de logradouros públicos
Uma patrulha ideológico-rodoviária
UM DEPUTADO estadual paulista apresentou um projeto de lei que poderá abrir o caminho para a cassação de nomes de ruas, avenidas e estradas. A rodovia Castello Branco, que liga São Paulo ao oeste do Estado, seria renomeada, trocando-se o nome do marechal eleito pelo Congresso depois da deposição de João Goulart pelo de um baluarte da democracia, como d. Helder Câmara, por exemplo. A designação de logradouros passaria pela peneira de um Conselho de Direitos Humanos.
O projeto dificilmente será aprovado. Se virar lei, não haverá de funcionar, a menos que se consiga uma justificativa politicamente correta para as ruas e avenidas que homenageiam escravocratas do Império. Mesmo assim, ele tem a virtude de provocar um bom debate, daqueles em que se entra com uma certeza e sai-se melhor, com algumas dúvidas.
Tudo bem, o marechal Castello Branco, titular de uma ditadura envergonhada, presidiu o país de 1964 a 1967 e, pelos crimes praticados em seu governo, não poderia ser nome de rodovia. E o que se vai fazer com as avenidas Presidente Vargas espalhadas por todo o Brasil? A ditadura de Castello durou três anos. A de Getúlio Vargas, oito.
Nesse caso, não se poderia mexer nos nomes dados às ruas? Aí surge o problema da rua Sérgio Fleury, localizada na cidade de São Carlos. O chefe dos janízaros (civis) da ditadura, sócio-fundador do Esquadrão da Morte, foi homenageado em 1980 pela Câmara Municipal da cidade. Há um mês, a mesma Câmara, por unanimidade, cassou a denominação e uma pesquisa informa que 75% dos moradores apoiam a mudança.
Às vezes esses troca-trocas acabam em palhaçada. Em 1897, a imprensa que cobria o terceiro ataque ao Arraial de Canudos contou, emocionada, a história do cabo Roque, que morreu protegendo o corpo do comandante da expedição. Rebatizaram com seu nome a travessa do Ouvidor, até que o cabo Roque apareceu no Rio, vivo. Em outros casos, as paixões prevalecem e acabam confundidas com a paisagem. Raros são os cariocas que se dão conta de uma dissonância quando chegam à praça Tiradentes.
Lá está a linda estátua equestre de d. Pedro 1º, neto da maluca Maria, em cujo reinado enforcaram o alferes. A praça chamava-se "Constituição", e o nome foi trocado nas celebrações do golpe republicano. Obrigaram o neto a ocupar o chão de uma vítima da avó.
Quando os moradores de uma rua declaram-se ofendidos pelo nome que meia dúzia de vereadores lhes impuseram, é razoável que o pleito seja atendido. Fora daí, a história ao país pertence. Não há como fugir dela sem o recurso ao autoritarismo político.
Em Montgomery, capital do Alabama e da confederação rebelde durante a Guerra da Secessão, há um cruzamento que resolve controvérsias desse tipo. Passada a Guerra Civil, os brancos se acertaram e impuseram aos negros um regime de segregação. Nessa nova harmonia, deu-se a uma avenida da cidade o nome de Jefferson Davis, presidente do Sul rebelado. Passou o tempo e uma comerciária negra recusou-se a dar o lugar para um branco num ônibus da cidade. Foi presa, desencadeou um boicote e o mundo soube da existência de um pastor chamado Martin Luther King. Ela se chamava Rosa Parks e morreu em 2005. Uma das avenidas de Montgomery recebeu o seu nome. Ela cruza a Jeff Davis, criando quatro gloriosas esquinas.
Texto de Elio Gaspari, na Folha de São Paulo, de 10 de junho de 2009.
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