CIA terceirizou elaboração de plano de tortura e interrogatório Der Spiegel
CIA terceirizou elaboração de plano de tortura e interrogatório
John Goetz e Britta Sandberg
As práticas de tortura utilizadas em interrogatórios de prisioneiros da Al Qaeda não foram elaboradas por funcionários do governo em Washington, mas sim por especialistas em segurança particular. Em troca do pagamento de uma taxa diária de consultoria, eles supervisionaram pessoalmente o programa nas prisões secretas da CIA desde o início.
A nova vida de James Mitchell começa todas as manhãs com o mesmo ritual: ele sai para dar uma corrida, usando calção Adidas e camiseta preta sem mangas, com o iPod no ouvido. Depois ele entra no seu luxuoso SUV (veículo utilitário esportivo) e dirige de volta até a sua luxuosa casa na Lake Vienna Drive, em Pasco County, no Estado da Flórida.
A casa, que tem estilo de sede de fazenda, com uma fachada em pedra natural, calçadas ladeadas por colunas e palmeiras em frente à porta, é novíssima. Mitchell acabou de concluir as obras de construção, em meio a uma comunidade afluente, que vive em um condomínio fechado.
A garagem independente à direita da casa é suficientemente grande para abrigar três ou quatro carros, e uma mountain bike está presa à traseira do SUV. Mitchell, um homem bronzeado de quase 60 anos, com cabelos grisalhos, uma barba bem aparada e óculos escuros de marca, passa duas horas por dia se exercitando. Na verdade, o exercício desempenha um papel importante na sua nova vida sob o céu azul da Flórida.
Mitchell é o homem que, em nome do governo do ex-presidente George W. Bush, desenvolveu as regras do programa que costumava ser citado, de forma meio envergonhada, como "técnicas especiais de interrogatório", e foi autorizado pelo presidente no verão de 2002. Na verdade, Mitchell desenvolveu um manual de tortura. O cliente dele era a Agência Central de Inteligência (CIA). A agência norte-americana de inteligência externa esteve envolvidas com as suas próprias práticas questionáveis no decorrer dos anos, atividades que no início ela tratava como elogiáveis, mas das quais, mais tarde, iria se arrepender amargamente. Mas agora ficou claro que a CIA, ironicamente ou não, terceirizou as suas práticas de tortura e interrogatório durante os anos mais negros do governo Bush. Ela encarregou uma firma de segurança particular administrada por James Mitchell e o seu sócio, Bruce Jessen, de elaborar e supervisionar esses interrogatórios.
Os dois psicólogos, que nunca tinham conduzido um interrogatório antes - em outras palavras, dois amadores - foram em grande parte responsáveis pela elaboração do programa de interrogatório de prisioneiros da CIA. O relatório recém-publicado do Comitê de Serviços Armados do Senado dos Estados Unidos exibiu novas evidências e detalhes a respeito dessa colaboração. A ABC News conseguiu filmar Jessen e Mitchell, que recusaram-se a responder a qualquer pergunta referente ao seu passado, afirmando que não contam com permissão para falar sobre o assunto.
Washington, dezembro de 2001
Três meses após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, Bush expulsou o Taleban do Afeganistão e delegou à CIA a tarefa de interrogar os prisioneiros que eram membros graduados da Al Qaeda. A agência, que tinha pouca experiência com interrogatórios, recorreu às autoridades do Departamento de Defesa para obter ajuda. Essas autoridades, por sua vez, entraram em contato com a Agência Conjunta de Recuperação de Pessoal, uma divisão do Departamento de Defesa responsável pelos norte-americanos capturados no exterior e pelo programa de treinamento secreto SERE, do exército dos Estados Unidos.
O SERE - acrônimo em inglês para Sobrevivência, Evasão, Resistência e Fuga - é um programa criado para preparar soldados dos Estados Unidos, especialmente pilotos, para situações que podem surgir após eles serem feitos prisioneiros. Durante vários seminários de treinamento, eles aprendem a aprimorar a sua capacidade de resistir aos maus tratos infligidos pelo inimigo e, no pior cenário, à tortura.
A maioria dos métodos baseia-se nas experiências da Guerra da Coreia. Durante o treinamento do SERE, soldados dos Estados Unidos são despojados de suas roupas, expostos a temperaturas extremas e a música alta, e jogados contra paredes. Eles são mantidos nas chamadas "posições de estresse" durante horas e, pelo menos até 2007, eram também submetidos ao waterboarding (método de tortura que consiste em despejar água sobre uma toalha colocada sobre a face de um prisioneiro que se encontra imobilizado sobre uma mesa, com o rosto voltado para cima).
A solicitação da CIA no sentido de aprender novos métodos de interrogatório também chegaram a James Mitchell. Ele havia atuado durante anos como psicólogo militar e treinado soldados no programa SERE. "Mitchell merece muito crédito nessa área", afirma Steven Kleinman, coronel da Força Aérea dos Estados Unidos. "Se ele tivesse continuado fazendo aquilo que fazia, poderíamos dizer até mesmo que ele contribuiu muito para o seu país. Infelizmente, depois daquilo ninguém o deteve".
Quando Mitchell soube da solicitação que veio de Washington, ele já havia se aposentado das forças armadas havia seis meses. Pela primeira vez na sua vida, ele tinha fundado a sua própria pequena empresa: a Knowledge Works, uma firma de consultoria, pelo menos no papel. Ele ficou nitidamente feliz em aceitar novos clientes e contratos.
Spokane, Estado de Washington, início de 2002
Por volta do início de 2002, Mitchell entrou em contato com um antigo colega que ainda trabalhava no programa de treinamento SERE como psicólogo. À época Bruce Jessen tinha pouco mais de 50 anos, era casado e tinha um filho. Tanto Mitchell quanto Jessen são mórmons. E, segundo os colegas, ambos são profundamente religiosos e patriotas ardentes - assim como muitos mórmons.
Mitchell pediu ajuda a Jessen. Ele desejava rever os métodos de treinamento da resistência da Al Qaeda. Depois disso, os dois redigiram uma recomendação inicial de medidas elaboradas para romper a resistência dos prisioneiros da Al Qaeda. Em 12 de fevereiro de 2002, eles mandaram o documento ao comandante da Agência Conjunta de Recuperação de Pessoal, coronel John "Randy" Moulton, que o repassou à sua cadeia de comando no JFCOM (comando conjunto das forças armadas dos Estados Unidos).
Em abril, eles apresentaram a primeira minuta de um novo programa de interrogatório à CIA, e propuseram a criação de uma nova "instalação de exploração" de prisioneiros. A minuta já incluía alguns dos métodos que desde então foram descobertos pela imprensa, incluindo privação do sono, uso da violência física e waterboarding. Segundo uma pessoa que à época estava envolvida com o programa, tanto Mitchell quanto Jessen estavam ansiosos para participar da guerra contra o terror como assessores da CIA. E a CIA? Segundo o informante, a agência buscava justificativas científicas e psicológicas para aquilo que pretendia fazer.
Faisalabad, Paquistão, 28 de março de 2002
Às duas da madrugada, agentes do Birô Federal de Investigação (FBI) e unidades da polícia paquistanesa invadiram uma casa de dois andares nos arredores da cidade, prendendo Abu Zubaydah, um especialista em logística da Al Qaeda. Os norte-americanos fizeram o seu mais importante prisioneiro até hoje. À época, eles acreditavam que Abu Zubaydah era o número quatro na hierarquia da Al Qaeda.
A prisão de Abu Zubaydah foi motivo de grande nervosismo em Washington. "Agora que tínhamos uma fonte indubitável nas nossas mãos - o mais graduado membro da Al Qaeda até então capturado - abrimos discussões no seio do Conselho de Segurança Nacional a respeito de como lidar com ele, já que a prisão e o interrogatório de um grande número de agentes da Al Qaeda nunca foi parte do nosso plano", escreveu mais tarde nas suas memórias o ex-diretor da CIA, George Tenet. "Nós perguntávamos o que poderíamos fazer legitimamente para obter as informações".
Vários reuniões e apresentações se seguiram. Delas participaram Bush, o vice-presidente Dick Cheney, a assessora de Segurança Nacional, Condoleezza Rice, o diretor da CIA, Tenet, e o seu vice. Tenet explicou que, após um estudo cuidadoso, a CIA concluiu que só havia uma forma de obter de militantes fanáticos da Al Qaeda detalhes sobre os futuros planos da organização terrorista: a utilização dos métodos do SERE. Tenet garantiu ao grupo que essas práticas de interrogatório já haviam sido testadas no treinamento de milhares de norte-americanos.
Mas alguém deveria ter dito aos políticos de Washington algo a respeito das várias advertências que o Departamento de Defesa recebeu de meia dúzia de instrutores do SERE. Em uma carta escrita em dezembro, o tenente-coronel da força aérea Daniel Baumgartner, que supervisionava os treinamentos do SERE, já havia pedido que os métodos do programa não fossem utilizados nos interrogatórios. Baumgartner observou que eles eram "menos confiáveis" e poderiam, na verdade, gerar o efeito oposto daquele desejado, ou seja, aumentar a resistência dos prisioneiros. Ele também advertiu que haveria "uma reação popular e política intolerável quando isso fosse descoberto".
Em 29 de março de 2002, um dia após a prisão de Zubaydah, James Mitchell fechou a Knowledge Works, a companhia que acabara de criar. Ele e Bruce Jessen, que alguns meses mais tarde sairia das forças armadas, fundaram uma nova companhia, a Mitchell Jessen & Associates. Os dois tornaram-se prestadores de serviços para a CIA, cobrando uma taxa diária de US$ 1.000, além de taxas especiais.
Prisão secreta da CIA na Tailândia, abril de 2002
Apenas alguns dias após a sua prisão, Zubaydah, um palestino nascido na Arábia Saudita, foi enviado a uma prisão secreta da CIA na Tailândia, acompanhado por agentes do FBI. Um dos homens do FBI, Ali Soufan, nativo do Líbano e muçulmano, fala árabe fluentemente, tendo se mudado para os Estados Unidos em 1987. Em 2000, ele esteve envolvido nas investigações do papel da Al Qaeda no ataque contra o destróier norte-americano USS Cole, no Iêmen.
Soufan, à época com pouco mais de 30 anos, defendia a tradicional estratégia do FBI conhecida como "construção de relacionamento", que se baseia na ideia de que um interrogatório só é capaz de produzir os resultados desejados quando se desenvolve um relacionamento com o prisioneiro. Soufan cuidou dos ferimentos recentes por arma de fogo que Zubaydah recebeu quando foi capturado. Ele disse a Zubaydah que conhecia até o apelido que a sua mãe lhe dera.
Durante sete anos, Soufan fez silêncio sobre o papel que desempenhou nos interrogatórios na Tailândia. Mas, na semana passada, ele decidiu dar uma entrevista exclusiva à revista "Newsweek". A justificativa dele para a entrevista foi: "Eu estava no meio disso tudo, e não é verdade que essas técnicas agressivas tenham sido efetivas".
Soufan mostrou a Zubaydah fotos de membros da Al Qaeda. Quando viu uma foto de Khalid Sheikh Mohammed, o prisioneiro o identificou como "o homem que planejou e organizou os ataques de 11 de setembro". Mais tarde, o governo Bush - sem qualquer justificativa - comemoraria essa informação obtida por meio dos interrogatórios do FBI como um marco significante e prova da eficiência de suas novas técnicas de interrogatório.
Alguns dias mais tarde, agentes da CIA chegaram à Tailândia. Ele trouxeram consigo James Mitchell, o arquiteto dos novos métodos de interrogatório. Subitamente o cenário mudou drasticamente. Mitchell ordenou que o tratamento duro dado a Zubaydah fosse intensificado caso ele não respondesse às perguntas.
Um dia Soufan, ao ver o prisioneiro nu, jogou uma toalha para ele. Mais tarde, ele e Mitchell tiveram uma discussão acalorada a respeito do tratamento do prisioneiro. "Nós somos os Estados Unidos da América e não fazemos esse tipo de coisa", Soufan lembra-se de ter gritado para Mitchell. Ele perguntou a Mitchell quem o havia autorizado a usar os métodos agressivos. Mitchell respondeu que recebera aprovação dos "escalões mais altos" de Washington. Tudo isso aconteceu em abril de 2002, quatro meses antes de o governo Bush emitir o seu primeiro memorando sobre a tortura a fim de justificar legalmente as técnicas de interrogatório.
Finalmente o FBI rompeu com a CIA no dia que Soufan descobriu uma caixa de madeira que parecia-se com um caixão. Será que a intenção era usar a caixa para uma simulação de sepultamento? Soufan telefonou para o seu superior em Washington. O então diretor do FBI, Robert Mueller, decidiu que a sua equipe não participaria mais desses interrogatórios e ordenou a Soufan e ao resto da equipe da sua instituição que retornassem a Washington. A partir daí, Mitchell e a CIA tiveram liberdade para agir da forma que bem entendessem.
Mais tarde Zubaydah relatou à Cruz Vermelha que foi trancado repetidamente na caixa, onde tinha dificuldade para respirar. Ele contou que foi também lançado contra uma parede repetidas vezes, impedido de dormir, imerso em água gelada e submetido a músicas extremamente altas. Ele foi submetido 83 vezes ao waterboarding.
Anos mais tarde, ele declarou: "Durante aquele período me disseram que eu era um dos primeiros a ser submetido àquelas técnicas de interrogatório, de forma que não havia regra alguma. Eu tive a sensação de que eles estava fazendo experiências e testando técnicas que mais tarde seriam usadas em outras pessoas".
Zubaydah foi a experiência de laboratório de Mitchell. O psicólogo teria dito aos agentes do FBI presentes que Zubaydah tinha que ser mantido em uma gaiola, como um cachorro, e que aquilo era de fato algo como uma experiência. Mitchell afirmou que os cães também acabam desistindo de resistir ao serem submetidos a choques elétricos.
Durante um curto período, os interrogatórios de Abu Zubaydah foram os mais bem documentados de todos. A CIA já possuiu 92 videoteipes dos interrogatórios a que ele foi submetido, incluindo episódios de waterboarding. Mas 90 dos vídeos foram destruídos em novembro de 2005. No entanto, nesta quarta-feira (12), o agente do FBI Soufan prestaria depoimento perante o Comitê do Judiciário no Senado dos Estados Unidos.
Spokane, Washington, abril de 2009
Os negócios ainda estão indo bem para a Mitchell Jessen & Associates. Atualmente a companhia tem 120 funcionários, e a maioria deles possui autorização para lidar com questões sigilosas de um grau normalmente reservado aos funcionários do governo. Muitos ex-integrantes do programa SERE atualmente trabalham para a companhia, que hoje em dia ocupa dois andares de um prédio de escritórios no centro de Spokane, incluindo o último andar. As instalações são à prova de interceptação de comunicações e estão equipadas com portas especiais de alta segurança - um padrão que a CIA exige das empresas civis que contrata.
O advogado de Abu Zubaydah, Brent Mickum, pretende entrar com uma ação civil contra Mitchell e Jessen, a menos que o presidente Barack Obama prefira indiciar criminalmente os empresários.
Ao ser questionado recentemente pelos jornalistas, Mitchell disse que gostaria de falar sobre essas questões, mas que um acordo de confidencialidade que assinou o impede de fazer tal coisa.
Tradução: UOL
Texto da Der Spiegel, no UOL.
Marcadores: CIA, Estados Unidos, prisões secretas da CIA, tortura, torturadores
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