terça-feira, março 17, 2009

Uma boa notícia sobre a ditadura

Enfim, uma boa notícia sobre a ditadura

DE TANTO MENTIR e de fingir que procura os documentos da ditadura, o governo ficou na posição de se ver condenado mesmo quando faz o certo. O general Jorge Felix, chefe do Gabinete de Segurança Institucional, entregou ao Arquivo Nacional 3.000 páginas com as atas de meio século de vida do falecido Conselho de Segurança Nacional (1934-1988). Nelas há 413 linhas embargadas. Equivalem a oito páginas e acredita-se que protejam transações dos anos 40 e da Guerra das Malvinas, de 1982.
A divulgação das atas do CSN é um grande acontecimento e o embargo de 0,37% do seu conteúdo não configura malfeitoria. Essa é a boa prática. Se um documento tem um trecho que pode comprometer o Estado, embarga-se o trecho, não o documento. Mais: quando isso é feito, identifica-se a instância administrativa que impôs a restrição e conhece-se a identidade do responsável pelo embargo. A liberação gradual é uma forma de transparência, não de censura, até porque sabendo-se onde está o trecho mascarado, pode-se batalhar pela sua exposição.
Um exemplo das virtudes desse sistema pode ser acompanhado na memória do depoimento de maio de 1971 do diretor da CIA, Richard Helms, a uma subcomissão do Senado americano que discutia a ditadura brasileira. O depoimento durou 2 horas e 20 minutos, foi taquigrafado e resultou num cartapácio de 96 páginas. Poucos meses depois, quando a comissão publicou seu relatório, nele havia um registro e esta era sua íntegra: "Censurado".
A transcrição, carimbada como "Top Secret", ficou no cofre da Comissão de Relações Exteriores do Senado. Em 1987, diante de um pedido formal, 75% do seu conteúdo foi liberado. Graças essa divulgação parcial aprende-se que a CIA apreciava a ditadura e Helms considerava o aparelho repressivo brasileiro uma "bagunça". Sabe-se exatamente onde estão os trechos embargados e quem quiser pode pedir uma revisão das canetadas.
Outro exemplo: em julho de 1962, o presidente John Kennedy recebeu no Salão Oval da Casa Branca o professor Lincoln Gordon, embaixador americano no Brasil. Conversaram durante 28 minutos e nesse encontro decidiu-se incluir o curinga do golpe militar no baralho das intenções americanas em relação ao governo do presidente João Goulart. (Foi o marido da Jackeline, e não o seu sucessor, Lyndon Johnson, quem armou o jogo americano no Brasil.)
Conhece-se a conversa de Kennedy com o embaixador porque o áudio do encontro está liberado, com seis trechos embargados. Eles somam 108 segundos (6,5%). A fita pode ser comprada na Biblioteca Kennedy por US$ 6.
Se perdurasse o choque entre a abertura total e a censura total dos documentos a fita de Kennedy e a transcrição de Helms ficariam no cofre. O radicalismo da liberação integral leva água para quem está mais interessado na treva do que na luz.
Por falar em documentação histórica, Nosso Guia pode prestar um serviço à memória da democracia. Basta proibir os membros da administração pública de tratar assuntos oficiais em endereços eletrônicos particulares. (A governadora Sarah Palin praticava esse truque e deu bolo.) Feito isso, fica entendido que os conteúdos dos discos rígidos da administração pública, inclusive os do Planalto, são propriedade do Estado, a quem compete preservá-los.

Texto de Elio Gaspari, na Folha de São Paulo, de 11 de março de 2009.

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