Eleitores demonstram cansaço da política (ruim) da Itália
Eleitores demonstram cansaço da política (ruim) da Itália
Os italianos se aproximam da eleição em um clima de tédio e pessimismo
Miguel Mora
Em Nápoles
Faltam 15 dias para que a Itália volte às urnas, passaram apenas dois anos desde a última eleição, a legislatura morreu na metade do caminho com um escândalo televisionado ao vivo para o mundo todo, já estamos há um longo mês em campanha eleitoral, a mussarela nem é mais o que era, a Alitalia diz que quer ser francesa e o repetitivo populismo berlusconiano -sorrisos brancos, interesses obscuros, demagogia, nacionalismo, piadas e insultos, a vida continua a mesma desde 1994- domina em todas as pesquisas.
Pode acontecer qualquer coisa porque ainda há uma legião de indecisos (cerca de um terço), e Walter Veltroni, o temperado líder da centro-esquerda, tenta contentar a todos percorrendo a Itália povoado por povoado, prometendo reformas, luta contra as máfias, e pouco a pouco reduziu sua desvantagem para 6 pontos (8,5 segundo Berlusconi). Além disso, o Senado parece se dirigir para um novo empate, o que voltaria a tornar o país ingovernável, depois de 27 governos em 30 anos.
É fácil adivinhar: a esta altura da Segunda República, e com o que está caindo sobre muitas famílias -a cesta básica subindo 20% ao ano, a luz e o gás nas nuvens, os salários estagnados, o medo generalizado da imigração, a forte precarização...-, muitos italianos estão fartos de eleições, da casta dos políticos, do Vaticano, dos clãs, das máfias e dos lobbies que retro-alimentam a eterna canção lampedusiana, deixemos que tudo mude para que tudo continue igual.
"Estamos preocupados porque a abstenção pode ser muito alta", reconhece Donato Mosella, candidato do Partido Democrático pela região da Campânia. Filho de imigrantes no Brasil, cristão de base e homem espiritual que olha nos olhos, Mosella é um dos milhares de aspirantes a ocupar um dos mais de mil lugares que serão distribuídos nas urnas nos dias 13 e 14. Mas sua percepção de sua região e de seu país está tão cheia de desesperança quanto a de muitos compatriotas: "Muita gente ainda respeita mais o crime organizado do que o Estado. Os limites entre legalidade e ilegalidade são muito difusos. A política, a causa parcial de um sistema eleitoral que nos afasta dos eleitores, se vê impotente para frear isso, mas a antipolítica produz efeitos muito piores. Se não tivermos fé na política, em que vamos ter?"
Mas no ambiente se respira algo pior, menos conjuntural: em Milão, na Sardenha, na Sicília, em Nápoles ou em Roma é muito fácil encontrar gente que perdeu a fé em seu próprio país. "A Itália é um romance noir", afirma Massimo Carlotto, 51 anos, autor de livros policiais provocadores, que denunciam a crescente infiltração das máfias, nacionais e estrangeiras, na polícia, na magistratura, na política e na economia. "A escrita noir se tornou subversiva nos tempos de Berlusconi", explica Carlotto em um bar de Cagliari, Sardenha, "mas contamos só a realidade. Os eleitores sabem que tudo o que escrevemos é verdade. Mas é vendido como ficção e ninguém faz nada".
"Estamos mal, pior que nunca, a decadência moral é absoluta, vivemos em uma falsificação permanente e não fazemos outra coisa além de nos lamentarmos porque o mundo não se adapta a nós", diagnostica o escritor napolitano Maurizio Braucci. "Precisamos de uma revolução cultural, estabelecer novos desejos, menos egoístas e mais coletivos, mas as pessoas devem se mobilizar de baixo", diz, "porque a política não funciona mais como motor de mudança social. A política exalta nossos vícios e não nossas virtudes."
Braucci, 41 anos, decidiu, assim como Roberto Saviano e Carlotto, dar um passo à frente e denunciar. A Itália, segundo o autor de "Il Mare Guasto" (O mar podre), "vive uma 'comedia dell'arte' sem nada de arte" e precisa "repensar o Estado" para enfrentar seus problemas: "Os empresários e as elites se comportam de modo criminoso com o meio ambiente e a segurança; os sindicatos têm uma cultura de posto de trabalho e não de trabalho; a precariedade laboral precarizou a vida; há um corporativismo paralisante à esquerda e à direita, e a Igreja é um enorme problema cultural porque faz política mas não utiliza sua autoridade moral para denunciar a conexão família-criminalidade que favorece as máfias".
Mulheres, pequenos e médios empresários, muitos jovens respiram esse mesmo cansaço. "Temos um país burocrático, velho e clientelista. Por isso perdemos o orgulho de nação", diz Elvira Zingone, dona de uma agência de viagens de idiomas.
Residente na Espanha durante sete anos, Zingone voltou em 2001 à Itália cheia de ilusão. Agora tem 41: "E já a perdi, mas votarei em Veltroni confiando que não nos engane, ele também". Abrir a empresa foi uma odisséia, ela conta: "Pagamos impostos altíssimos e se você quer pedir uma ajuda da União Européia precisa de seis meses de papelada. Se o Estado o trata como se fosse roubar, no final você desiste".
Enquanto isso, toda noite, a discussão política toma conta dos canais de televisão. É o novo espetáculo do horário nobre. Ouve-se "um falatório contínuo, uma retórica brilhante mas vazia de conteúdo", afirma Zingone. Poucas idéias simples, raras propostas globais e os cidadãos fazendo de público. É o caldo de cultivo ideal para o populismo, como avisou Ezio Mauro, diretor do jornal "La Repubblica".
O veterano senhor Marino, dono de uma pizzaria aberta em 1934 junto ao porto de Nápoles, não é menos pessimista: "A Itália já não é tão bela como era. Tudo está parado. O nível intelectual despencou, temos políticos incompetentes e ficamos para trás da Espanha e da França".
Dir-se-ia que se algo mudar será para pior, como no caso do lixo de Nápoles. As máfias e as ecomáfias manipulam, segundo cálculos diversos, 6% do PIB. "A Camorra está em prefeituras, bairros, famílias, becos. É como uma hidra", resume com um gesto resignado o comissário chefe da polícia de Nápoles, Angelo Mastropaolo. "Quando você detém um deles, logo surgem outros três."
Na Calábria, a 'Ndrangheta encenou esta semana uma nova guerra aberta: quatro mortos, incluindo uma menina de 5 anos, filha de um chefão...
"Força Berlusconi!", exclama alegre Antonella Esposito, bela atendente de um supermercado napolitano. Tem 35 anos, é mãe de um filho e se declara beata de Jesus e da Madonna. Seu otimismo parece comovente: "A Itália continua sendo linda demais".
Na guarida da Camorra
"Scampia é o não-lugar", diz Tonino Tornaiuolo, um jovem de 21 anos que nasceu e vive nesse bairro da periferia norte de Nápoles, uma enorme cidade-dormitório na qual vivem cerca de 80 mil pessoas. As casas são agrupadas em lotes e imensas avenidas separam uns dos outros: "Exceto um pequeno bar e um quiosque, não há lojas de nenhum tipo, não há hospital, nem bares e restaurantes. Por isso quando você sai a única coisa que pode dizer é: e agora, para onde vou?"
O bairro foi construído nos anos 1970 e serviu para realojar as famílias que viviam em situação de risco no centro histórico e muitas outras que perderam suas casas no terremoto de 1980. Com elas chegaram cerca de 800 ciganos eslavos procedentes da Iugoslávia. Mais de 25 anos depois, Scampia é um supermercado da droga e um modelo de abandono. Os ciganos continuam vivendo em seus barracos embaixo de um viaduto, e embora seus filhos tenham nascido aqui continuam sem documentos. Muitos jovens -há 75% de desemprego juvenil- caem nas redes da Camorra, que decide a escala hierárquica dos "camelos". "Aqui o Estado é a Camorra", explica Tonino. "É o bairro mais novo de Nápoles, mas falta fazer tudo. Desde os 11 anos as famílias captam os meninos para avisar se a polícia está chegando, e depois vão subindo até que começam a passar droga."
Alguns jovens de Scampia se rebelaram contra essa situação com o apoio do padre jesuíta Fabrizio Balletti e seu centro de formação Gonzalo Hurtado. Graças a eles, Scampia é hoje um símbolo de esperança e um modelo de resistência cultural à Camorra. "Não é preciso defender a Deus, ele se defende sozinho", exclama o padre Balletti, de 70 anos.
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
Os italianos se aproximam da eleição em um clima de tédio e pessimismo
Miguel Mora
Em Nápoles
Faltam 15 dias para que a Itália volte às urnas, passaram apenas dois anos desde a última eleição, a legislatura morreu na metade do caminho com um escândalo televisionado ao vivo para o mundo todo, já estamos há um longo mês em campanha eleitoral, a mussarela nem é mais o que era, a Alitalia diz que quer ser francesa e o repetitivo populismo berlusconiano -sorrisos brancos, interesses obscuros, demagogia, nacionalismo, piadas e insultos, a vida continua a mesma desde 1994- domina em todas as pesquisas.
Pode acontecer qualquer coisa porque ainda há uma legião de indecisos (cerca de um terço), e Walter Veltroni, o temperado líder da centro-esquerda, tenta contentar a todos percorrendo a Itália povoado por povoado, prometendo reformas, luta contra as máfias, e pouco a pouco reduziu sua desvantagem para 6 pontos (8,5 segundo Berlusconi). Além disso, o Senado parece se dirigir para um novo empate, o que voltaria a tornar o país ingovernável, depois de 27 governos em 30 anos.
É fácil adivinhar: a esta altura da Segunda República, e com o que está caindo sobre muitas famílias -a cesta básica subindo 20% ao ano, a luz e o gás nas nuvens, os salários estagnados, o medo generalizado da imigração, a forte precarização...-, muitos italianos estão fartos de eleições, da casta dos políticos, do Vaticano, dos clãs, das máfias e dos lobbies que retro-alimentam a eterna canção lampedusiana, deixemos que tudo mude para que tudo continue igual.
"Estamos preocupados porque a abstenção pode ser muito alta", reconhece Donato Mosella, candidato do Partido Democrático pela região da Campânia. Filho de imigrantes no Brasil, cristão de base e homem espiritual que olha nos olhos, Mosella é um dos milhares de aspirantes a ocupar um dos mais de mil lugares que serão distribuídos nas urnas nos dias 13 e 14. Mas sua percepção de sua região e de seu país está tão cheia de desesperança quanto a de muitos compatriotas: "Muita gente ainda respeita mais o crime organizado do que o Estado. Os limites entre legalidade e ilegalidade são muito difusos. A política, a causa parcial de um sistema eleitoral que nos afasta dos eleitores, se vê impotente para frear isso, mas a antipolítica produz efeitos muito piores. Se não tivermos fé na política, em que vamos ter?"
Mas no ambiente se respira algo pior, menos conjuntural: em Milão, na Sardenha, na Sicília, em Nápoles ou em Roma é muito fácil encontrar gente que perdeu a fé em seu próprio país. "A Itália é um romance noir", afirma Massimo Carlotto, 51 anos, autor de livros policiais provocadores, que denunciam a crescente infiltração das máfias, nacionais e estrangeiras, na polícia, na magistratura, na política e na economia. "A escrita noir se tornou subversiva nos tempos de Berlusconi", explica Carlotto em um bar de Cagliari, Sardenha, "mas contamos só a realidade. Os eleitores sabem que tudo o que escrevemos é verdade. Mas é vendido como ficção e ninguém faz nada".
"Estamos mal, pior que nunca, a decadência moral é absoluta, vivemos em uma falsificação permanente e não fazemos outra coisa além de nos lamentarmos porque o mundo não se adapta a nós", diagnostica o escritor napolitano Maurizio Braucci. "Precisamos de uma revolução cultural, estabelecer novos desejos, menos egoístas e mais coletivos, mas as pessoas devem se mobilizar de baixo", diz, "porque a política não funciona mais como motor de mudança social. A política exalta nossos vícios e não nossas virtudes."
Braucci, 41 anos, decidiu, assim como Roberto Saviano e Carlotto, dar um passo à frente e denunciar. A Itália, segundo o autor de "Il Mare Guasto" (O mar podre), "vive uma 'comedia dell'arte' sem nada de arte" e precisa "repensar o Estado" para enfrentar seus problemas: "Os empresários e as elites se comportam de modo criminoso com o meio ambiente e a segurança; os sindicatos têm uma cultura de posto de trabalho e não de trabalho; a precariedade laboral precarizou a vida; há um corporativismo paralisante à esquerda e à direita, e a Igreja é um enorme problema cultural porque faz política mas não utiliza sua autoridade moral para denunciar a conexão família-criminalidade que favorece as máfias".
Mulheres, pequenos e médios empresários, muitos jovens respiram esse mesmo cansaço. "Temos um país burocrático, velho e clientelista. Por isso perdemos o orgulho de nação", diz Elvira Zingone, dona de uma agência de viagens de idiomas.
Residente na Espanha durante sete anos, Zingone voltou em 2001 à Itália cheia de ilusão. Agora tem 41: "E já a perdi, mas votarei em Veltroni confiando que não nos engane, ele também". Abrir a empresa foi uma odisséia, ela conta: "Pagamos impostos altíssimos e se você quer pedir uma ajuda da União Européia precisa de seis meses de papelada. Se o Estado o trata como se fosse roubar, no final você desiste".
Enquanto isso, toda noite, a discussão política toma conta dos canais de televisão. É o novo espetáculo do horário nobre. Ouve-se "um falatório contínuo, uma retórica brilhante mas vazia de conteúdo", afirma Zingone. Poucas idéias simples, raras propostas globais e os cidadãos fazendo de público. É o caldo de cultivo ideal para o populismo, como avisou Ezio Mauro, diretor do jornal "La Repubblica".
O veterano senhor Marino, dono de uma pizzaria aberta em 1934 junto ao porto de Nápoles, não é menos pessimista: "A Itália já não é tão bela como era. Tudo está parado. O nível intelectual despencou, temos políticos incompetentes e ficamos para trás da Espanha e da França".
Dir-se-ia que se algo mudar será para pior, como no caso do lixo de Nápoles. As máfias e as ecomáfias manipulam, segundo cálculos diversos, 6% do PIB. "A Camorra está em prefeituras, bairros, famílias, becos. É como uma hidra", resume com um gesto resignado o comissário chefe da polícia de Nápoles, Angelo Mastropaolo. "Quando você detém um deles, logo surgem outros três."
Na Calábria, a 'Ndrangheta encenou esta semana uma nova guerra aberta: quatro mortos, incluindo uma menina de 5 anos, filha de um chefão...
"Força Berlusconi!", exclama alegre Antonella Esposito, bela atendente de um supermercado napolitano. Tem 35 anos, é mãe de um filho e se declara beata de Jesus e da Madonna. Seu otimismo parece comovente: "A Itália continua sendo linda demais".
Na guarida da Camorra
"Scampia é o não-lugar", diz Tonino Tornaiuolo, um jovem de 21 anos que nasceu e vive nesse bairro da periferia norte de Nápoles, uma enorme cidade-dormitório na qual vivem cerca de 80 mil pessoas. As casas são agrupadas em lotes e imensas avenidas separam uns dos outros: "Exceto um pequeno bar e um quiosque, não há lojas de nenhum tipo, não há hospital, nem bares e restaurantes. Por isso quando você sai a única coisa que pode dizer é: e agora, para onde vou?"
O bairro foi construído nos anos 1970 e serviu para realojar as famílias que viviam em situação de risco no centro histórico e muitas outras que perderam suas casas no terremoto de 1980. Com elas chegaram cerca de 800 ciganos eslavos procedentes da Iugoslávia. Mais de 25 anos depois, Scampia é um supermercado da droga e um modelo de abandono. Os ciganos continuam vivendo em seus barracos embaixo de um viaduto, e embora seus filhos tenham nascido aqui continuam sem documentos. Muitos jovens -há 75% de desemprego juvenil- caem nas redes da Camorra, que decide a escala hierárquica dos "camelos". "Aqui o Estado é a Camorra", explica Tonino. "É o bairro mais novo de Nápoles, mas falta fazer tudo. Desde os 11 anos as famílias captam os meninos para avisar se a polícia está chegando, e depois vão subindo até que começam a passar droga."
Alguns jovens de Scampia se rebelaram contra essa situação com o apoio do padre jesuíta Fabrizio Balletti e seu centro de formação Gonzalo Hurtado. Graças a eles, Scampia é hoje um símbolo de esperança e um modelo de resistência cultural à Camorra. "Não é preciso defender a Deus, ele se defende sozinho", exclama o padre Balletti, de 70 anos.
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
Texto do jornal El País, reproduzido no UOL (para assinantes).
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