Antes do golpe de 1973, Chile tentou criar o "software do socialismo"
Antes do golpe de 1973, Chile tentou criar o "software do socialismo"
Alexei Barrionuevo
Em Santiago, no Chile
Quando tropas militares leais ao general Augusto Pinochet deram um golpe de Estado aqui em setembro de 1973, elas fizeram uma descoberta surpreendente. O governo socialista de Salvador Allende havia embarcado silenciosamente em uma nova experiência no sentido de gerenciar a economia do Chile usando um volumoso computador e uma rede de máquinas de telex.
O projeto, chamado Cybersyn, foi criado por A. Stafford Beer, um britânico visionário que utilizou os seus conceitos de cibernética para ajudar Allende a encontrar uma alternativa às economias planificadas de Cuba e da União Soviética. Após o golpe o programa tornou-se objeto de um intenso escrutínio militar.
Réplica da poltrona original do Cybersyn é exibida no Centro Cultural de La Moneda
Uma cadeira no estilo Star Trek, com controles nos encostos para os braços, era uma réplica daquelas que ficavam em uma sala de operações de protótipos. Beer pretendia que a sala recebesse relatórios de computador baseados em dados que fluiriam a partir de máquinas de telex conectadas a fábricas espalhadas ao longo deste país de 4.350 km de extensão. Os gerentes ficariam sentados em sete dessas cadeiras abauladas e tomariam decisões críticas sobre os relatórios exibidos em telas de projeção.
Embora as operações da sala jamais tenham atingido um grau de operacionalidade total, o Cybersyn ganhou importância no governo de Allende por ajudá-lo a neutralizar as ações de trabalhadores em greve em outubro de 1972. Isso ajudou os planejadores a perceber - conforme ocorreu também com os pioneiros da atual Internet - que a rede de comunicação era mais importante do que o poder computacional, algo do qual, aliás, o Chile não dispunha muito. Uma única máquina IBM 360/50, que tinha menos capacidade de armazenagem do que a maioria dos flash drives de hoje, processava os dados das fábricas. Mais tarde esta operação passou a ser realizada por um Burroughs 3500.
O Cybersyn nasceu em julho de 1971, quando Fernando Flores, à época um tecnocrata do governo de 28 anos de idade, enviou uma carta a Beer buscando ajuda para organizar a economia do governo Allende por meio da aplicação de conceitos cibernéticos. Beer, um consultor de sucesso, ficou entusiasmado com a perspectiva de ser capaz de testar as suas idéias.
Ele quis usar o sistema de comunicações por telex - uma rede de teleprinters - para coletar dados das fábricas a respeito de diversas variáveis, como produção diária, energia utilizada e trabalho "em tempo real", e a seguir usar um computador para filtrar os fragmentos mais importantes de informação econômica dos quais o governo necessitava para tomar decisões.
Beer criou uma equipe de programadores na Inglaterra e no Chile, e passou a viajar regularmente para Santiago a fim de dirigir o projeto. Ele recebia US$ 500 por dia enquanto trabalhava no Chile, conta Raul Espejo, que era o diretor de operações do Cybersyn.
O inglês transformou-se em um mentor para a equipe chilena. Muitos dos membros dessa equipe tinham entre 20 e 30 anos de idade. Em uma das suas visitas ao Chile ele tentou inspirá-los apresentando-lhes o livro "Fernão Capelo Gaivota", de Richard Bach, a história de uma gaivota que segue o seu sonho de dominar a arte de voar, chocando-se com a vontade do bando.
Uma figura imponente, com uma longa barba mesclada de tons grisalhos, Beer, que abandonou a faculdade, desafiava os jovens chilenos com questões difíceis. Ele dividia com os pupilos a sua paixão por escrever poesias e pintar, e trouxe livros e discos de música clássica da Europa. Ele fumava charutos e bebia constantemente uísque e vinho, "sem, no entanto, nunca perder a cabeça", diz Espejo.
A maior parte dos membros da equipe Cybersyn evitava escrupulosamente falar sobre política, e alguns tinham até idéias ultradireitistas, segundo Isaquino Benadof, que chefiou a equipe de engenheiros chilenos que projetava o software Cybersyn.
Um desafio inicial foi encontrar uma forma de criar a rede de comunicação. Com poucas verbas, a equipe descobriu 500 máquinas de telex que não eram utilizadas em um depósito da companhia nacional de telecomunicações.
O ponto de inflexão para o Cybersyn ocorreu em outubro de 1972, quando uma greve de motoristas e varejistas quase paralisou a economia. As máquinas de telex interconectadas, trocando 2.000 mensagens por minuto, eram um potencial instrumento para resolver o problema, possibilitando ao governo identificar e organizar fontes alternativas de transporte que mantiveram a economia funcionando.
A greve terminou em uma semana. Embora ela tenha enfraquecido o partido Unidade Popular, de Allende, o governo sobreviveu, e o Cybersyn foi elogiado por ter desempenhado um grande papel. "A partir daquele ponto o centro de comunicação tornou-se parte de tudo o que estivesse acontecendo", narra Espejo.
"O Chile é governado por um computador", anunciou uma manchete do "The British Observer", em 7 de janeiro de 1973, quando notícias sobre o experimento começaram a vazar.
Mas, à medida que a situação política e de segurança do país se deteriorava, Beer e a sua equipe chilena perceberam que o tempo estava se esgotando para o projeto.
Allende permaneceu fiel ao Cybersyn até o final. Em 8 de setembro de 1973, ele deu ordens para que a sala de operações fosse transferida para o palácio presidencial. Mas três dias depois os militares tomaram o poder. Allende morreu naquela tarde.
Oficiais militares em breve confrontaram os líderes do Cybersyn, procurando descobrir as suas motivações políticas. Benadof conta que foi interrogado pelo menos três vezes. Espejo, após ter sido questionado, foi advertido a deixar o país. Dois meses após o golpe ele fugiu para a Inglaterra.
Os militares jamais entenderam o Cybersyn, e finalmente desmantelaram a sala de operações. Vários outros membros da equipe do Cybersyn foram para o exílio. Flores, que era simultaneamente ministro da Economia e das Finanças no governo Allende, passou três anos preso em campos de concentração militares. Após a sua libertação, ele mudou-se com a família para a Califórnia para estudar nas Universidades Stanford e da Califórnia, em Berkeley, onde obteve um Ph.D. em filosofia.
Mais tarde ele foi um dos inventores do Coordinator, um programa que identificava interações verbais entre trabalhadores de uma companhia, e que foi um dos precursores dos softwares "workflow". Flores tornou-se milionário e retornou ao Chile, onde hoje é senador, representando a região de Tarapaca.
Beer, que morreu em 2002, ajudou alguns dos membros da equipe a conseguir empregos de professor universitário na Inglaterra. Entre este grupo estava Espejo, que se dedicou ao estudo para o avanço da cibernética.
"O projeto chileno transformou completamente a vida de Stafford, e ele obviamente teve um enorme impacto sobre todos nós", explica Espejo. "Não há dúvida de que o trabalho dele não foi reconhecido em vida. Mas aquilo que ele escreveu permanecerá vivo por muito tempo".
Tradução: UOL
Texto do The New York Times, reproduzido no UOL (para assinantes do UOL).
Alexei Barrionuevo
Em Santiago, no Chile
Quando tropas militares leais ao general Augusto Pinochet deram um golpe de Estado aqui em setembro de 1973, elas fizeram uma descoberta surpreendente. O governo socialista de Salvador Allende havia embarcado silenciosamente em uma nova experiência no sentido de gerenciar a economia do Chile usando um volumoso computador e uma rede de máquinas de telex.
O projeto, chamado Cybersyn, foi criado por A. Stafford Beer, um britânico visionário que utilizou os seus conceitos de cibernética para ajudar Allende a encontrar uma alternativa às economias planificadas de Cuba e da União Soviética. Após o golpe o programa tornou-se objeto de um intenso escrutínio militar.
Ao desenvolver o Cybersyn, Beer mudou as vidas dos jovens e brilhantes chilenos que trabalhavam aqui. Cerca de 35 anos depois, este aspecto pouco conhecido da tentativa abortada de transformação socialista promovida por Allende foi lembrada em uma mostra em um museu abaixo do palácio presidencial La Moneda.
Réplica da poltrona original do Cybersyn é exibida no Centro Cultural de La Moneda
Uma cadeira no estilo Star Trek, com controles nos encostos para os braços, era uma réplica daquelas que ficavam em uma sala de operações de protótipos. Beer pretendia que a sala recebesse relatórios de computador baseados em dados que fluiriam a partir de máquinas de telex conectadas a fábricas espalhadas ao longo deste país de 4.350 km de extensão. Os gerentes ficariam sentados em sete dessas cadeiras abauladas e tomariam decisões críticas sobre os relatórios exibidos em telas de projeção.
Embora as operações da sala jamais tenham atingido um grau de operacionalidade total, o Cybersyn ganhou importância no governo de Allende por ajudá-lo a neutralizar as ações de trabalhadores em greve em outubro de 1972. Isso ajudou os planejadores a perceber - conforme ocorreu também com os pioneiros da atual Internet - que a rede de comunicação era mais importante do que o poder computacional, algo do qual, aliás, o Chile não dispunha muito. Uma única máquina IBM 360/50, que tinha menos capacidade de armazenagem do que a maioria dos flash drives de hoje, processava os dados das fábricas. Mais tarde esta operação passou a ser realizada por um Burroughs 3500.
O Cybersyn nasceu em julho de 1971, quando Fernando Flores, à época um tecnocrata do governo de 28 anos de idade, enviou uma carta a Beer buscando ajuda para organizar a economia do governo Allende por meio da aplicação de conceitos cibernéticos. Beer, um consultor de sucesso, ficou entusiasmado com a perspectiva de ser capaz de testar as suas idéias.
Ele quis usar o sistema de comunicações por telex - uma rede de teleprinters - para coletar dados das fábricas a respeito de diversas variáveis, como produção diária, energia utilizada e trabalho "em tempo real", e a seguir usar um computador para filtrar os fragmentos mais importantes de informação econômica dos quais o governo necessitava para tomar decisões.
Beer criou uma equipe de programadores na Inglaterra e no Chile, e passou a viajar regularmente para Santiago a fim de dirigir o projeto. Ele recebia US$ 500 por dia enquanto trabalhava no Chile, conta Raul Espejo, que era o diretor de operações do Cybersyn.
O inglês transformou-se em um mentor para a equipe chilena. Muitos dos membros dessa equipe tinham entre 20 e 30 anos de idade. Em uma das suas visitas ao Chile ele tentou inspirá-los apresentando-lhes o livro "Fernão Capelo Gaivota", de Richard Bach, a história de uma gaivota que segue o seu sonho de dominar a arte de voar, chocando-se com a vontade do bando.
Uma figura imponente, com uma longa barba mesclada de tons grisalhos, Beer, que abandonou a faculdade, desafiava os jovens chilenos com questões difíceis. Ele dividia com os pupilos a sua paixão por escrever poesias e pintar, e trouxe livros e discos de música clássica da Europa. Ele fumava charutos e bebia constantemente uísque e vinho, "sem, no entanto, nunca perder a cabeça", diz Espejo.
A maior parte dos membros da equipe Cybersyn evitava escrupulosamente falar sobre política, e alguns tinham até idéias ultradireitistas, segundo Isaquino Benadof, que chefiou a equipe de engenheiros chilenos que projetava o software Cybersyn.
Um desafio inicial foi encontrar uma forma de criar a rede de comunicação. Com poucas verbas, a equipe descobriu 500 máquinas de telex que não eram utilizadas em um depósito da companhia nacional de telecomunicações.
O ponto de inflexão para o Cybersyn ocorreu em outubro de 1972, quando uma greve de motoristas e varejistas quase paralisou a economia. As máquinas de telex interconectadas, trocando 2.000 mensagens por minuto, eram um potencial instrumento para resolver o problema, possibilitando ao governo identificar e organizar fontes alternativas de transporte que mantiveram a economia funcionando.
A greve terminou em uma semana. Embora ela tenha enfraquecido o partido Unidade Popular, de Allende, o governo sobreviveu, e o Cybersyn foi elogiado por ter desempenhado um grande papel. "A partir daquele ponto o centro de comunicação tornou-se parte de tudo o que estivesse acontecendo", narra Espejo.
"O Chile é governado por um computador", anunciou uma manchete do "The British Observer", em 7 de janeiro de 1973, quando notícias sobre o experimento começaram a vazar.
Mas, à medida que a situação política e de segurança do país se deteriorava, Beer e a sua equipe chilena perceberam que o tempo estava se esgotando para o projeto.
Allende permaneceu fiel ao Cybersyn até o final. Em 8 de setembro de 1973, ele deu ordens para que a sala de operações fosse transferida para o palácio presidencial. Mas três dias depois os militares tomaram o poder. Allende morreu naquela tarde.
Oficiais militares em breve confrontaram os líderes do Cybersyn, procurando descobrir as suas motivações políticas. Benadof conta que foi interrogado pelo menos três vezes. Espejo, após ter sido questionado, foi advertido a deixar o país. Dois meses após o golpe ele fugiu para a Inglaterra.
Os militares jamais entenderam o Cybersyn, e finalmente desmantelaram a sala de operações. Vários outros membros da equipe do Cybersyn foram para o exílio. Flores, que era simultaneamente ministro da Economia e das Finanças no governo Allende, passou três anos preso em campos de concentração militares. Após a sua libertação, ele mudou-se com a família para a Califórnia para estudar nas Universidades Stanford e da Califórnia, em Berkeley, onde obteve um Ph.D. em filosofia.
Mais tarde ele foi um dos inventores do Coordinator, um programa que identificava interações verbais entre trabalhadores de uma companhia, e que foi um dos precursores dos softwares "workflow". Flores tornou-se milionário e retornou ao Chile, onde hoje é senador, representando a região de Tarapaca.
Beer, que morreu em 2002, ajudou alguns dos membros da equipe a conseguir empregos de professor universitário na Inglaterra. Entre este grupo estava Espejo, que se dedicou ao estudo para o avanço da cibernética.
"O projeto chileno transformou completamente a vida de Stafford, e ele obviamente teve um enorme impacto sobre todos nós", explica Espejo. "Não há dúvida de que o trabalho dele não foi reconhecido em vida. Mas aquilo que ele escreveu permanecerá vivo por muito tempo".
Tradução: UOL
Texto do The New York Times, reproduzido no UOL (para assinantes do UOL).
Marcadores: Allende, Chile, informática
0 Comments:
Postar um comentário
<< Home