terça-feira, janeiro 15, 2008

Charles Taylor, lições para a África e perguntas ao Brasil

Se alguém por aqui assistiu ao filme "O Senhor das Armas" deve lembrar do personagem André Baptiste, o tirano africano que era um dos melhores clientes do traficante de armas interpretado por Nicholas Cage e que funcionava como uma espécie de espelho no qual o protagonista via refletidos seus piores defeitos. Numa cena, após matar um soldado que lhe havia irritado, Baptiste lamenta: "A juventude de hoje é muito desregrada. Para mim, a culpa é da MTV."

Baptiste é inspirado no ex-ditador da Libéria, Charles Taylor. Durante os anos 90 ele comandou um grupo rebelde contra outro ditador, Samuel Doe. Ambos os lados cometeram atrocidades no conflito e em 1997 concordaram em resolver a disputa por eleições. Taylor concorreu com o slogan mais infame de todos os tempos: "Ele matou minha mãe, matou meu pai, mas votarei nele." Na realidade, o candidato ameaçava retomar a guerra se perdesse. Ganhou.

Taylor rapinou a Libéria como presidente, entre 1997 e 2003, e não satisfeito resolveu intervir na guerra civil do país vizinho, Serra Leoa, apoiando duas facções rebeldes com armas, dinheiro e soldados, em troca dos diamantes do país - o filme "Diamante de Sangue" é um retrato ficcional melodramático, mas razoavelmente preciso, daquele conflito.

Até aí temos os clichês habituais sobre a África. Mas o jogo mudou no contiente: a guerra civil em Serra Leoa acabou com uma bem-sucedida intervenção dos britânicos e das Nações Unidas e foi formado um interassante tribunal misto, com juízes estrangeiros e locais, para julgar as violações de direitos humanos no conflito. Por ordem dessa instituição, Charles Taylor - já fora do poder na Libéria - foi encarcerado.

Ele se tornou o primeiro ditador africano a estar em julgamento por seus crimes. O processo começara no ano passado, mas fora interrompido, e recomeçou nesta semana. Está sendo marcado por depoimentos emocionantes, como não poderia deixar de ser numa guerra que envolveu mutilações de civis, recrutamento forçado de crianças-soldados e trabalho escravo em minas de diamantes.

Os governos africanos sempre foram muito relutantes em aceitar intervenções humanitárias, mas a maré começou a virar após o genocídio em Ruanda, em 1994. O tribunal de Serra Leoa confirma a tendência e é significativo que a atual presidenta da Libéria, Ellen Johnson-Sirleaf, tenha sido das pessoas que mais colaboraram para a prisão de seu antecessor, que estava exilado na Nigéria. Johnson-Sirleaf é a primeira mulher a ser eleita para chefiar um Estado na África, e trata-se de respeitada economista educada em Harvard, com longo histórico de millitância pró-democracia.

A África está mudando, mas será que o Brasil percebe isso? A política externa brasileira para o continente tem sido marcada por gafes inacreditáveis no que diz respeito à democracia e aos direitos humanos. Lula visitou e abraçou alguns dos piores tiranos da região, como os ditadores do Gabão e de Burkina Faso (que também interveio em Serra Leoa, aliás junto com Kadafi, da Líbia), com freqüência fazendo piadas sobre o longo tempo que eles ocupam o poder. Fora a apatia brasileira diante do genocído de Darfur, em contraste com as posições firmes defendidas por outros países latino-americanos, como a Argentina.

O Brasil poderia - e deveria, a meu ver - ter uma agenda diferente, procurando destacar a importância de líderanças renovadoras como as de Johnson-Sirleaf.

E aqui temos outro ponto delicado. Em todo o planeta, autoridades que violaram direitos humanos em ditaduras e guerras estão sendo julgadas e presas. Isso ocorre na América do Sul (Argentina, Bolívia, Chile, Peru, Uruguai), na África (Serra Leoa, Libéria, Ruanda), na Europa (Ex-Iugoslávia). Mesmo Estados que proclamaram anistias passaram por amplas comissões de verdade e reconciliação, ajudando na tarefa de passar a limpo um passado difícil - caso da África do Sul, da Guatemala, de El Salvador.

O Brasil optou pela impunidade e pelo silêncio, ficando na incômoda companhia das piores ditaduras da Ásia e do Oriente Médio, as únicas que se comportam assim. Os contrangimentos internacionais a que o Brasil está submetido ficam claros nos processos que juízes europeus, como da Espanha e da Itália, movem contra militares brasileiros por conta de seqüestros, torturas e assassinatos a nacionais daqueles países.

As leis brasileiras concederam anistia aos crimes da época e proíbem a extradição de cidadãos nacionais. No entanto, os processos europeus contribuem para colocar em evidência as posições vergonhosas assumidas pelo Brasil. O mundo mudou. Soberania não é mais um escudo que se possa usar para esconder erros e crimes. Seu novo sentido é o conjunto das obrigações que garantem a vida civilizada, assumidas perante seus próprios cidadãos e a sociedade internacional. Isso vale em Monróvia, Freetown, Kigali, Lagos e até em Brasília.

Do blog Todos os Fogos o Fogo.

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