quarta-feira, dezembro 20, 2006

"Lula é Muitos" - Opinião - Folha de São Paulo, 18/12/2006

Lula é muitos

ANTONIO NEGRI e GIUSEPPE COCCO


O governo Lula é o mais democrático pelo fato de ser não só representante dos movimentos mas também, em parte, sua expressão


LOGO NO início da crise política de 2005, uma rede chamada Universidade Nômade lançou um "manifesto pela radicalização democrática e contra a desestabilização do governo Lula". O manifesto difundiu-se rizomaticamente pela internet, com a adesão de milhares de intelectuais e militantes (Folha de S.Paulo, 28/8/05), que participaram de um movimento horizontal de mobilização democrática que não parou de crescer, enfraquecendo a capacidade de manipulação da grande mídia.
O conteúdo do manifesto continua atual. Nele, lembra-se que a radicalidade de um governo não depende unicamente de sua determinação interna, mas, sobretudo, da pressão social que renova continuamente sua legitimidade. A "corrupção", por sua vez, é fruto do próprio mecanismo de representação: a redução da potência dos muitos ao poder de poucos (sobretudo quando a mediação se dá em condições "imperfeitas" -e, no caso do Brasil, "imperfeitas" é um eufemismo) é sempre produtiva de distorções do processo democrático.
Para avançar no terreno da transformação social, é necessária uma maior mobilização democrática, ou seja, mais representação, mas também, e sobretudo, mais participação. Nesse nível, o governo Lula é o mais democrático e o mais ético pelo simples fato de ser não apenas "representante" dos movimentos mas também, em parte, sua expressão.
Nessa base, o movimento pela radicalização democrática lançou a palavra de ordem "Lula é muitos". De fato, Lula foge ao controle dos poderes fortes da elite cínica e racista não porque é carismático, mas porque expressa a capacidade de se comunicar com os muitos enquanto muitos, sem reduzi-los a um conjunto representável pela "opinião pública" (que, no Brasil, é o resultado de uma mistificação totalitária).
Lula não é decisionista! Pelo contrário, suas hesitações -cinicamente criticadas pela elite- fazem dele um chefe de Estado, no nível interno, atravessado pelos desejos dos muitos, e, no nível externo, particularmente aberto à construção de uma política da interdependência. Lula conseguiu inovar democraticamente e abrir a tesoura das obrigações internas e externas por meio de sua política externa e de suas políticas sociais. Sua inovação desloca os dois lados do discurso conservador: o -neoliberal- apologético do mercado e o -"crítico"- do desenvolvimentismo nacionalista.
O operário metalúrgico continua a marcha da liberdade que começou quando migrou do Nordeste para São Paulo. Sua política externa é pós-nacional e pós-soberana. É capaz de evitar a Alca e a hegemonia européia abrindo-se à interdependência (sul-americana e Sul-Sul), e não se fechando na procura de uma independência que necessariamente acabaria nas atrozes ambigüidades do nacionalismo identitário.
Sua política social (Bolsa Família, valorização do salário mínimo, microcrédito, reforma universitária, política de cotas) é pós-industrial. Capaz de indicar horizontes fortes de luta -ao mesmo tempo- contra a herança neo-escravagista da fome e da miséria e contra as conseqüências da modernização industrial.
A elite treme. O que lhe aparecia como um monstro é, na realidade, o anjo da multidão dos "sem", e, dessa vez, sua eleição não foi homologada por nenhum "satisfecit" prévio do establishment. A vitória de Lula é tão potente que à grande mídia não resta senão tentar dar vida a um cadáver, ou seja, à alternativa entre crescimento e estabilidade monetária.
Mas, a partir da reeleição de Lula, é possível pensar um nítido deslocamento com relação às duas abordagens: uma nova, mais intensa distribuição de renda (renda monetária e serviços de cidadania: acesso à universidade, à saúde, aos transportes etc.) deve ser a base do crescimento, de um crescimento sustentável e "integrador", porque sua dinâmica se articula com a mobilização radicalmente democrática da sociedade e, nessa exata medida, a uma guinada ética.
A elite mantém a pressão. Ela visa precisamente pautar "a posteriori" seu governo por um novo leque de constrangimentos, mesmo que, agora, se chamem "horizonte de crescimento". Para isso a elite pode contar, paradoxalmente, com o ideologismo economicista de uma suposta "esquerda", cuja imaginação se reduz a um impossível sonho neokeynesiano (chamado "pleno emprego").
É a capacidade de ver a política social como política de investimento que permitirá a Lula continuar a ser "muitos", a não ser que a coalizão dos interesses de sempre o deixe com "poucos"... cabelos brancos!


ANTONIO NEGRI , 73, filósofo italiano, é professor titular aposentado da Universidade de Pádua (Itália) e professor de filosofia do Colégio Internacional de Paris (França). Entre outras obras, escreveu, em parceria com Michael Hardt, os livros "Império" e "Multidão".

GIUSEPPE COCCO , 50, cientista político, doutor em história social pela Universidade de Paris, é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Entre outras obras, escreveu, com Antonio Negri, o livro "Glob(AL): Biopoder e Luta em uma América Latina Globalizada".

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1812200608.htm