sexta-feira, março 12, 2010

Teles e Safatle: O Que Resta da Ditadura

Livro avalia o triste legado da ditadura militar em diversas esferas da vida social brasileira hoje em dia

A obra O que resta da ditadura: a exceção brasileira, organizada por Edson Teles e Vladimir Safatle, reúne uma série de ensaios que esquadrinham o legado deixado pelo regime militar na estrutura jurídica, nas práticas políticas, na literatura, na violência institucionalizada e em outras esferas da vida social brasileira.

"Vivemos atualmente dias de inquietude e incerteza. [...] Tenho a convicção de que o nosso Exército saberá, como sempre, contornar tão graves inquietações e continuará, a despeito de qualquer decisão, protegendo a nação do estrangeiro e de si mesma."

Gal. Luiz Cesário da Silveira Filho, 11/3/2009


“Quem controla o passado, controla o futuro”. A frase de 1984, que serve de epígrafe a este livro, indica claramente o tamanho do que está em jogo quando a questão é elaborar o passado. Todos conhecemos a temática clássica das sociedades destinadas a repetir o que são incapazes de elaborar; sociedades que já definem de antemão seu futuro a partir do momento que fazem de tudo para agir como se nada soubessem a respeito do que se acumulou às suas costas.

A história é implacável na quantidade de exemplos de estruturas sociais que se desagregam exatamente por lutar compulsivamente para esquecer as raízes dos fracassos que atormentam o presente. No caso da realidade nacional, esse esquecimento mostra-se particularmente astuto em suas múltiplas estratégias. Ele pode ir desde o simples silêncio até um peculiar dispositivo que mereceria o nome de “hiper-historicismo”. Maneira de remeter as raízes dos impasses do presente a um passado longínquo (a realidade escravocrata, o clientelismo português etc.), isto para, sistematicamente, não ver o que o passado recente produziu. Como se fôssemos vítimas de um certo “astigmatismo histórico”.

O que propomos neste livro é, pois, falar do passado recente e da sua incrível capacidade de não passar. Mas, para tanto, faz-se necessário mostrar, àqueles que preferem não ver, a maneira insidiosa que a ditadura militar brasileira encontrou de não passar, de permanecer em nossa estrutura jurídica, em nossas práticas políticas, em nossa violência cotidiana, em nossos traumas sociais que se fazem sentir mesmo depois de reconciliações extorquidas. Daí a pergunta que deu origem ao seminário realizado na Universidade de São Paulo em 2008, cujos resultados aparecem agora em livro: “O que resta da ditadura”.

Pergunta ainda mais urgente se lembrarmos a incrível capacidade que a ditadura brasileira tem de desaparecer. Ela vai aos poucos não sendo mais chamada pelo seu nome, ou sendo chamada apenas entre aspas, como se nunca houvesse realmente existido. Na melhor das hipóteses, como se houvesse existido apenas em um curto espasmo de tempo no qual vigorou o AI-5. Talvez o que chamamos de ditadura tenha sido apenas uma reação um pouco demasiada às ameaças de radicalização que espreitavam nossa democracia. Quem sabe, daqui a algumas décadas, conseguiremos realizar o feito notável de fazer uma ditadura simplesmente desaparecer?

No interior desta lógica perversa de negação há, ao menos, um ponto verdadeiro. A saber, a ditadura brasileira deve ser analisada em sua especificidade.

Ela não foi uma ditadura como as outras. De fato, como gostaríamos de salientar, há uma “exceção brasileira”. No entanto, ela não está lá onde alguns gostariam que ela estivesse. Pois acreditamos que uma ditadura se mede (por que não?, tenhamos coragem de dizer que medir uma ditadura é uma boa ideia). Ela se mede não por meio da contagem de mortos deixados para trás, mas através das marcas que ela deixa no presente, ou seja, através daquilo que ela deixará para frente. Neste sentido, podemos dizer com toda a segurança: a ditadura brasileira foi a ditadura mais violenta que o ciclo negro latino-americano conheceu.

Quando estudos demonstram que, ao contrário do que aconteceu em outros países da América Latina, as práticas de tortura em prisões brasileiras aumentaram em relação aos casos de tortura na ditadura militar; quando vemos o Brasil como o único país sul-americano onde torturadores nunca foram julgados, onde não houve justiça de transição, onde o Exército não fez um mea culpa de seus pendores golpistas; quando ouvimos sistematicamente oficiais na ativa e na reserva fazerem elogios inacreditáveis à ditadura militar; quando lembramos que 25 anos depois do fim da ditadura convivemos com o ocultamento de cadáveres daqueles que morreram nas mãos das Forças Armadas; então começamos a ver, de maneira um pouco mais clara, o que significa exatamente “violência”. Pois nenhuma palavra melhor do que “violência” descreve esta maneira que tem o passado ditatorial de permanecer como um fantasma a assombrar e contaminar o presente.

“Contaminar” porque devemos nos perguntar como a incapacidade de reconhecer e julgar os crimes de Estado cometidos no passado transforma-se em uma espécie de referência inconsciente para ações criminosas perpetradas por nossa polícia, pelo aparato judiciário, por setores do Estado.

Neste ponto, vale a pena lembrar como falar de “exceção brasileira” também tem outro sentido. Pois uma das características mais decisivas da ditadura brasileira era sua legalidade aparente ou, para ser mais preciso, a sua capacidade de reduzir a legalidade à dimensão da aparência. Tínhamos eleições com direito a partido de oposição, editoras que publicavam livros de Marx, Lenin, Celso Furtado, músicas de protesto, governo que assinava tratados internacionais contra a tortura, mas, no fundo, sabíamos que tudo isto estava submetido à decisão arbitrária de um poder soberano que se colocava fora do ordenamento jurídico.

Quando era conveniente, as regras eleitorais eram modificadas, os livros apreendidos, as músicas censuradas, alguém desaparecia. Em suma, a lei era suspensa. Uma ditadura que se servia da legalidade para transformar seu poder soberano de suspender a lei, de designar terroristas, de assassinar opositores em um arbítrio absolutamente traumático. Pois neste tipo de situação nunca se sabe quando se está fora da lei, já que o próprio poder faz questão de mostrar que pode embaralhar, a qualquer momento, direito e ausência de direito.

O que nos deixa com uma pergunta que não quer calar: diante de uma situação sociopolítica, como a nossa atual situação, em que campanhas eleitorais são feitas sempre com fundos ilegais; em que a Constituição federal, desde sua aprovação, foi objeto de um reformismo infinito (mais de sessenta emendas constitucionais, sem contar artigos que, passados vinte anos, ainda não vigoram por falta de lei complementar) – como se fosse questão de flexibilizar a aplicação da lei constitucional de acordo com a conveniência –; em que banqueiros corruptos têm reconhecidas “facilidades” nos tribunais; em que nem sempre é evidente distinguir policiais de bandidos, quem pode falar hoje com toda a segurança que este modo de conjugar lei e anomia próprio à ditadura militar realmente passou? Isto não significa em absoluto cometer o erro primário de confundir nossa semidemocracia com uma ditadura, mas trata-se de lembrar de onde vem o que impede nossa experiência democrática avançar.

Levando em conta questões desta natureza, apresentamos aqui um conjunto de artigos que procuram avaliar múltiplos aspectos deste legado da ditadura. A perenidade institucional e jurídica dos aparatos econômicos e securitários criados na ditadura militar são analisados. Da mesma forma, a aberração brasileira em relação ao direito internacional sobre crimes contra a humanidade é aqui discutida, juntamente com o trauma social resultante da anulação do direito de memória.

Há ainda artigos que visam analisar o legado político da ditadura, assim como as tentativas de deslegitimar o direito à violência contra um Estado ditatorial ilegal. Avaliações históricas sobre a maneira como as Forças Armadas relacionaram-se com o problema da anistia e reflexões sobre a literatura diante do dever de memória completam o quadro.

Por fim, resta dizer que, normalmente, organizar ou escrever livros é motivo de um estranho sentimento, no interior do qual algo que um dia foi chamado de felicidade se faz sentir. No entanto, organizar este livro é, como dizia Bartleby, algo que “Eu preferia não...” [I would prefer not to]. Quando a ditadura acabou, os organizadores deste livro nunca imaginaram precisar colocar, 25 anos depois, questões sobre porque o legado da ditadura teima em não terminar, porque os corpos de seus mortos ainda não foram acolhidos pela memória. A história, no entanto, tem maneiras cruéis de ensinar o verdadeiro tamanho das batalhas.

Texto originário do Vi o Mundo.

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