segunda-feira, fevereiro 01, 2010

A Democracia Americana é uma ficção útil

Democracy in America Is a Useful Fiction

por Chris Hedges*, no
Common Dreams, por indicação do Marco Aurélio

As forças corporativas, bem antes da decisão da Suprema Corte no processo Cidadãos Unidos vs. Comissão Eleitoral Federal [nessa decisão, a maioria da Suprema Corte dos Estados Unidos reduziu os limites para as doações financeiras das corporações no processo político], deram um golpe de estado em câmera lenta. O golpe acabou. Perdemos. A decisão é apenas mais uma tentativa judicial de reduzir os mecanismos de controle corporativo. Expõe o mito de uma democracia em funcionamento e o triunfo do poder corporativo. Mas não altera o quadro político. O estado corporativo está firmemente cimentado em seu lugar.

A ficção da democracia permanece útil, não apenas para as corporações, mas para nossa classe liberal falida. Se a ficção for seriamente desafiada, os liberais serão forçados a considerar a resistência, o que não será prazeroso, nem fácil. Enquanto a fachada democrática existir, os liberais podem se engajar em posturas morais vazias que requerem pequeno sacrifício ou compromisso. Eles podem ser os líderes auto-indicados do Partido Democrata, agindo como se fossem parte do debate e se sentindo vingados com seus gritos de protesto.

Muito do protesto expresso sobre a decisão da Suprema Corte é ultraje daqueles que preferem essa coreografia. Enquanto ela existir, eles não precisam se preocupar em como combater o que o filósofo político Sheldon Wolin chama de nosso sistema de "totalitarismo invertido".

Ele representa "a chegada ao período do poder corporativo e da desmobilização política da cidadania", escreveu Wolin em seu livro Democracia Inc. O totalitarismo invertido difere das formas clássicas de totalitarismo, que giram em torno de um líder demagógico ou carismático, e encontra sua expressão no anonimato do estado corporativo.

As forças corporativas por trás do totalitarismo invertido não fazem como os movimentos totalitários clássicos, que anunciam a substituição de estruturas decadentes por estruturas revolucionárias. O totalitarismo invertido supostamente honra a política eleitoral, a liberdade e a Constituição. Mas faz isso de forma tão corrupta e manipuladora das ferramentas do poder que torna a democracia impossível.

Totalitarismo invertido não é conceituado como uma ideologia, nem é tema de políticas públicas. Ele avança através de "autoridades e cidadãos que muitas vezes parecem não se dar conta das consequências de suas ações ou inações", Wolin escreve. Mas é tão perigoso quanto as formas clássicas do totalitarismo. Em um sistema de totalitarismo invertido, como a decisão da Suprema Corte ilustra, não é necessário reescrever a Constituição, como regimes fascistas ou comunistas fazem. É suficiente explorar os meios de poder legítimos através da interpretação legislativa ou judicial.

Essa exploração assegura que grandes contribuições de campanha das corporações sejam protegidas como "direito à liberdade de expressão" sob a Primeira Emenda [da Constituição dos Estados Unidos]. Assegura que a atividade lobista organizada e pesadamente financiada pelas grandes corporações seja interpretada como protegida pelo direito da população de peticionar ao governo. Aqueles que dentro das corporações cometem crimes podem evitar a cadeia pagando grandes somas de dinheiro ao governo enquanto, de acordo com a interpretação judicial, não "admitem qualquer crime". Existe uma palavra para isso. É chamado corrupção.

As corporações tem 35 mil lobistas em Washington e milhares mais em capitais estaduais para dar dinheiro, formatar e escrever leis. Elas usam os chamados comitês de ação política para obter de seus empregados e acionistas dinheiro para dar a candidatos amigáveis. O setor financeiro, por exemplo, gastou mais de 5 bilhões de dólares em campanhas políticas, ações de influência política ou lobistas na década passada, o que resultou em profunda desregulamentação, o furto de consumidores, o derretimento financeiro global e a pilhagem subsequente do Tesouro dos Estados Unidos.

Os Fabricantes e Pesquisadores Farmacêuticos dos Estados Unidos gastaram 26 milhões de dólares no ano passado e companhias como a Pfizer, Amgen e Eli Lilly deram dezenas de milhões mais para comprar os dois partidos. Essas corporações fizeram da assim chamada reforma do sistema de saúde uma lei que vai nos forçar a comprar produtos defeituosos e predatórios.

A indústria de gás e petróleo, a indústria do carvão, os empreiteiros da Defesa e as companhias de telecomunicações bloquearam a busca por energia sustentável e orquestraram a constante erosão das liberdades civis. Políticos defendem as corporações e promovem atos superficiais de teatro político para manter a ficção de que o estado democrático está vivo.

Não existe instituição nacional que possa ser caracterizada como democrática. Os cidadãos, em vez de participar do poder, podem ter opiniões virtuais sobre questões pré-determinadas, uma forma de fascismo participativo tão sem sentido quando votar no "American Idol" [o Big Brother dos Estados Unidos].

Emoções de massa são estimuladas nas chamadas "guerras culturais". Isso nos permite assumir posições emocionais em questões que são inconsequentes para a elite política.

Nossa transformação em um império, como aconteceu com Atenas e Roma, viu a tirania que praticamos no estrangeiro se transformar na tirania que praticamos em casa. Nós, como todos os impérios, fomos destruídos pelo nosso próprio expansionismo. Nós utilizamos armas de terrível poder destruidor, subsidiamos o desenvolvimento delas com bilhões de dólares de dinheiro público e somos os maiores vendedores de armas do mundo. E a Constituição, como Wolin nota, é usada "para servir aos aprendizes do poder, não como a consciência deles".

"O totalitarismo invertido inverte as coisas", Wolin escreve. "É política o tempo todo, mas largamente despotilizada. Disputas partidárias são ocasionalmente apresentadas em público e há a constante disputa entre facções de partidos, grupos de interesse, competidores corporativos e grupos de mídia rivais. E há, naturalmente, o momento culminante das eleições nacionais, quando a atenção da Nação é exigida para fazer a escolha entre personalidades, em vez de alternativas de poder. O que está ausente é o político, o compromisso de encontrar onde fica o bem comum no meio dos interesses bem financiados, altamente organizados e que com um mar de dinheiro vivo praticam a subversão do governo representativo e da administração pública".

Hollywood, a indústria de notícias e a televisão, todas controladas por corporações, se tornaram instrumentos do totalitarismo invertido. Eles censuram ou fazem ridículo daqueles que criticam ou desafiam as estruturas corporativas. Eles saturam as ondas com controvérsias fabricadas, seja [o escândalo envolvendo o golfista] Tiger Woods ou a disputa entre [os apresentadores de TV] Jay Leno e Conan O'Brien.

Eles manipulam imagens para nos fazer confundir sensações com conhecimento, que foi como Barack Obama se tornou presidente. E o controle interno empregado pelo Departamento de Segurança da Pátria, os militares e a polícia sobre qualquer forma de dissidência interna, junto com a censura da mídia corporativa, fazem pelo totalitarismo invertido o que as tropas de choque e as fogueiras de livros fizeram pelos regimes totalitários clássicos.

"Parece um replay da experiência histórica que a distorção praticada pela mídia de hoje tenha como alvo consistente as sobras do liberalismo", Wolin escreveu. "Faz-me lembrar que um elemento comum do totalitarismo do século 20, seja Fascismo ou Stalinismo, era a hostilidade em relação à esquerda. Nos Estados Unidos, a esquerda é considerada espaço exclusivo de liberais, ocasionalmente a "ala esquerda do Partido Democrata", nunca de democratas".

Liberais, socialistas, sindicalistas, jornalistas e intelectuais independentes, muitos dos quais um dia foram vozes importantes de nossa sociedade, foram silenciados ou foram alvo de eliminação dentro da universidade, da mídia e do governo controlados pelas corporações. Wolin, que foi professor em Berkeley e mais tarde em Princeton, é um dos mais importantes filósofos políticos do país. Ainda assim seu novo livro foi virtualmente ignorado. Também é por isso que Ralph Nader, Dennis Kucinich e Cynthia McKinney, assim como intelectuais como Noam Chomsky, não fazem parte de nosso discurso nacional.

A uniformidade de opiniões é reforçada pelas emoções orquestradas pelo nacionalismo e pelo patriotismo, que descrevem os dissidentes como "fracos" ou "não patriotas". O cidadão "patriota", com medo de perder emprego e de possíveis ataques terroristas, dá apoio ao monitoramento indiscriminado e ao estado militarizado. Isso significa não questionar o 1 trilhão de dólares em gastos relacionados à defesa. Isso significa manter as agências militares e de inteligência acima do governo, como se não fizessem parte dele. Os mais poderosos instrumentos do poder e do controle estatais foram removidos das discussões públicas.

Nós, como cidadãos imperiais, somos ensinados a desprezar a burocracia governamental; ainda assim, ficamos como carneiros diante dos agentes da Segurança da Pátria em aeroportos e ficamos mudos quando o Congresso permite que nossa correspondência e nossas conversas sejam monitoradas e arquivadas. Estamos sob maior controle estatal do que em qualquer outra época da História americana.

A linguagem cívica, patriótica e política que usamos para nos descrever permanece a mesma. Demonstramos lealdade aos mesmos símbolos nacionais e iconografia. Encontramos nossa identidade coletiva nos mesmos mitos nacionais. Continuamos a deificar os Pais Fundadores. Mas os Estados Unidos que celebramos é uma ilusão. Não existem. Nosso governo e nosso judiciário não tem soberania. Nossa imprensa oferece diversão, não informação. Nossos órgãos de segurança e poder nos mantém tão domesticados e amedrontados quanto a maioria dos iraquianos. O capitalismo, como entendeu Karl Marx, quando elimina o governo se torna uma força revolucionária. E essa força revolucionária, melhor descrita como totalitarismo invertido, está nos mergulhando em um estado de neo-feudalismo, guerra perpétua e repressão severa. A decisão da Suprema Corte é parte de nossa transformação, pelo estado corporativo, de cidadãos em prisioneiros.

*Chris Hedges escreve para a Truthdig.com. Ele é autor dos livros War Is A Force That Gives Us Meaning, What Every Person Should Know About War e American Fascists: The Christian Right and the War on America. Seu livro mais recente é Empire of Illusion: The End of Literacy and the Triumph of Spectacle.


Texto visto no Vi o Mundo.


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