terça-feira, janeiro 19, 2010

Lata de lixo da história

A lata de lixo da história


O regime totalitário que durou 21 anos tem muitos culpados e poucos inocentes




NA ÉPOCA , não acompanhei em detalhes o julgamento da viúva de Mao Tse Tung em Pequim. Não é o meu gênero. Não curto viúvas e, em matéria de Oriente, guardo progressiva distância. Cito Buñuel: "O Oriente não me interessa. Nunca fui além de Viena". Bem, eu já estive mais longe, pisei, com meus pés de Lins de Vasconcelos, areias do deserto e cidades mongólicas, mas deixa para lá. Não gosto do Oriente, é um direito meu e pronto. Mesmo assim, andei recentemente por lá, visitei a Grande Muralha e a Cidade Proibida, mas em feitio de turista banal, para me provar que não sou ortodoxo em nada, sobretudo em se tratando de terras e povos.
Mas o julgamento de Pequim não deixou de ser um fato importante na história do nosso tempo. O passado é de hoje: em 1968, no mesmo ano em que havia passeatas no Rio, houve aquela bagunça em Paris e em outras cidades europeias. A impressão era uma só: o jovem tomava o poder. Na China, a Revolução Cultural foi cantada em prosa e verso, mais verso do que prosa. Nada seria como antes depois do poder jovem.
Por meio do julgamento da viúva de Mao, soubemos que houve torturas cometidas em nome da juventude, houve injustiças e, sobretudo, 100 mil de chineses de todas as idades foram assassinados e outros 100 mil desapareceram. A Anistia Internacional não se preocupou muito com isso, afinal, num país de 900 milhões de habitantes (população aproximada na época) 100 mil ou 200 mil pessoas não são nada em termos estatísticos.
Mas não era bem isso que desejava comentar. Torturas, injustiças, mortes e perseguições são complicadores (a palavra foi lançada pelos tecnocratas, e é bom que a aproveite) da aventura humana na face da Terra. O que me dá um arrepio na carne é a precariedade dos valores que sustentam determinada ideologia, determinado regime político.
No Brasil, quando surgiu o movimento de 1964, saí por aí como um Dom Quixote mal informado, dando patadas e cusparadas na turma que tomou o poder. Não me arrependo das patadas nem do cuspe que lancei. Afinal, eu procurava falar por mim mesmo, ofendido estava pela violência dos fatos, mas sem entrar no mérito de suas respectivas causas. Como disse Otto Maria Carpeaux, sem dar razão aos vencidos, eu criticava os vencedores.
Fico pensando nos milhares de mortos da China, assassinados em nome de uma verdade revolucionária que não durou 12 anos. Ninguém dará à vida novamente esses mortos, hoje tidos como vítimas de um regime criminoso. Meia dúzia de ex-mandatários, entre os quais a própria sra. Mao Tse Tung, pagaram pelo pato.
Evidente que existem muitos outros culpados. Mas nem assim valeu a pena matar tanta gente em nome do erro. E agora pergunto: será que o julgamento também não foi um erro? Juízes de hoje não poderão ser julgados amanhã e irem todos para a lata de lixo da história?
Bem, cada vez que penso nisso, fico mais tranquilo pelo fato de, sem ter feito realmente nada, já pertencer por vontade própria à citada lata do lixo. Para sair dela, seria necessário optar por uma verdade, e eu abomino a verdade que justifica o assassinato, a tortura, a mentira.
Não tenho muitos motivos para ser um homem tranquilo. Muito pelo contrário. Considero a tranquilidade plena uma forma de estupidez. Mas, ao menos nesse ponto, prefiro ser estúpido e tranquilo.
A lata de lixo da história é muito mais ampla, nela cabe muita gente, boa e má. Na verdade, creio que os piores estão dentro dela. É um consolo besta, mas óbvio: é preferível ir para a lata do lixo do que merecer cinco linhas na enciclopédia, anunciando à posteridade nossos equívocos e nossa miséria.
Saindo da China e voltando ao Brasil, temos uma lata de lixo assombrosa, tamanho família, mas nela cabe ainda muita gente. Discutimos agora a Lei da Anistia, o governo está dividido, a sociedade parece dividida também. Há que haver latas de lixo diferenciadas para papéis, vidros, plásticos, todas talvez não darão para manter limpa a nossa consciência cívica. O regime totalitário que durou 21 anos e promoveu torturas, exílios, desaparecimentos e mortes tem muitos culpados e poucos inocentes.

Texto de Carlos Heitor Cony, na Folha de São Paulo, de 15 de janeiro de 2010.


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