Miséria e desemprego escondidos no rico Japão
Miséria e desemprego escondidos no rico Japão
Philippe Pons
Enviado especial a Osaka (Japão)
O estrondo das portas de ferro que se erguem rompeu o silêncio do amanhecer. E eles entraram no grande pátio da agência de empregos. Carregando sacos, puxando malas com rodinhas, são de 200 a 300 deles. A maioria, com mais de quarenta anos. São 5 horas da manhã: os cerca de cem quartos de aluguel e dois albergues dão vazão a seus ocupantes. Alguns saem de bicicleta, outros caminham até a estação. Cerca de 50 sem-tetos, que acampavam em volta do pátio nas caixas de papelão ou sob armações de obras, dobram seus trapos.
Na rua, caminhonetes esperam agrupadas com um cartaz no pára-brisa, expondo as ofertas de emprego em regime diário ou mensal. Recrutadores com ar de delinquentes chamam os mais robustos. O pátio zune com vozes e discussões. Diante das máquinas de latas de saquê e cerveja, do outro lado da rua, se formam pequenas filas. Aqueles que não têm os 100 ienes (R$ 1,55) para comprar uma bebida, vagueiam em torno em um pedido silencioso. Alguns, de pé, sorvem uma sopa em um boteco. A maioria compra um sanduíche, que comem sozinhos.
O mercado de mão-de-obra temporária de Kamagasaki, na parte sul da dinâmica Osaka, é o maior do Japão. Quinze anos atrás, eles eram mais de 20 mil, e, toda manhã, metade era empregada. Com a recessão, o mercado encolheu, e hoje, não passam de 250 ofertas de trabalho por dia. O Japão envelheceu. Kamagasaki também. "Aqui, a prioridade não é mais a defesa das condições de trabalho, mas uma política social para os idosos", diz Minoru Yamada, que dirige uma organização assistencial da prefeitura.
Segunda maior economia do mundo, o Japão tem um dos mais elevados índices de pobreza entre os países desenvolvidos. Segundo um estudo do ministério dos Assuntos Sociais, publicado em outubro, 15,7% dos japoneses - ou seja, um em cada seis - , dispunham em 2006 de menos da metade da renda média anual (ou seja, 1,14 milhão de ienes, o equivalente a R$ 22 mil). "Uma situação que está entre as piores da OCDE [Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico]", admitiu o ministro da Saúde e do Trabalho, Akira Nagatsuma.
Por muito tempo, o governo ignorou a pobreza, temendo reconhecer ali um fracasso nacional. Mito de uma sociedade que se considerava igualitária: a pobreza não existia; ela era um problema individual, não social. "A grande exclusão não é o resultado de uma crise: é um fenômeno persistente de nossas sociedades", lembra Xavier Emmanuelli, ex-secretário de Estado para a Ação Humanitária e fundador do SAMU social, que veio ao Japão para explorar as possibilidades de colaboração com organismos locais.
Em "Kama", como é chamada aqui, enquanto se tem força física, é possível se virar, - ou seja, sobreviver em um mercado de trabalho amplamente controlado pelo submundo e sujeito à violência. Mas não se sai dos "cortiços sem volta": Sanya em Tóquio, Kotobuki em Yokohama, Kama em Osaka. Nessas "cidadelas sem muros" que não se distinguem em nada do resto da cidade a não ser pela sua fauna de miseráveis, sempre se morre na rua. Uma morte muitas vezes anônima.
Um terço dos 25 mil habitantes de Kamagasaki têm mais de 60 anos e vivem da previdência social. Outros - 1.000, 2.000 - , não são recenseados. Eles não respondem às pesquisas administrativas, que implicam o contato com suas famílias. Eles romperam com seu passado e muitas vezes "evaporaram". Aqui e ali, anúncios de parentes sem notícias. Um nome, algumas palavras: "Volte, nós te protegeremos", "Papai está morrendo..."
O sol se põe, e assim como um exército desbaratado, cerca de 500 a 600 pessoas se dirigem aos dois albergues de até 1.400 vagas, carregando suas trouxas, alguns andando lentamente e muitos deles imundos. Às 5 horas da manhã, eles voltam a ganhar as ruas. E começa a se estender um tempo sem ritmo: uma liberdade abissal.
Cruza-se com errantes, sujos e hirsutos, de rosto amassado, cujos passos indecisos não levam a lugar nenhum; silhuetas sem idade, de ombros submissos, uma garrafa de saquê nas mãos; vociferantes ou comatosos. Alguns, completamente embriagados, já jazem na calcada. Pequenos grupos se aglutinam em torno de uma tábua sobre uma caixa: por algumas centenas de ienes, o espaço de um instante, os dados são sinônimo de esperança para esses homens que não têm mais nenhuma. Marginais ficam à espreita, caso apareça a "tempestade", ou seja, a polícia.
Assim que anoitece, instala-se um estranho silêncio, rompido pelas tosses catarrentas e pelos pigarros vindos das caixas de papelão dos que dormem na rua. Pôsteres que representam micróbios pendurados em um personagem alertam contra a tuberculose: em "Kama", essa doença da pobreza tem um índice comparável ao do Camboja. Um acompanhamento melhor contém sua propagação de alguma forma. E ainda há o alcoolismo e os problemas mentais. Os hospitais muitas vezes recusam os loucos da rua: "Tentamos acalmá-los. Que mais podemos fazer?", explica um pastor.
Em "Kama", a expectativa de vida é a mais curta de um país onde a longevidade é uma das mais altas do mundo. Mas também há manhãs luminosas, como aquela captada pelo autor de uma pichação: "A alvorada sorri. Ainda estou vivo".
Tradução: Lana Lim
Texto do Le Monde, reproduzido no UOL.
Enviado especial a Osaka (Japão)
O estrondo das portas de ferro que se erguem rompeu o silêncio do amanhecer. E eles entraram no grande pátio da agência de empregos. Carregando sacos, puxando malas com rodinhas, são de 200 a 300 deles. A maioria, com mais de quarenta anos. São 5 horas da manhã: os cerca de cem quartos de aluguel e dois albergues dão vazão a seus ocupantes. Alguns saem de bicicleta, outros caminham até a estação. Cerca de 50 sem-tetos, que acampavam em volta do pátio nas caixas de papelão ou sob armações de obras, dobram seus trapos.
Na rua, caminhonetes esperam agrupadas com um cartaz no pára-brisa, expondo as ofertas de emprego em regime diário ou mensal. Recrutadores com ar de delinquentes chamam os mais robustos. O pátio zune com vozes e discussões. Diante das máquinas de latas de saquê e cerveja, do outro lado da rua, se formam pequenas filas. Aqueles que não têm os 100 ienes (R$ 1,55) para comprar uma bebida, vagueiam em torno em um pedido silencioso. Alguns, de pé, sorvem uma sopa em um boteco. A maioria compra um sanduíche, que comem sozinhos.
O mercado de mão-de-obra temporária de Kamagasaki, na parte sul da dinâmica Osaka, é o maior do Japão. Quinze anos atrás, eles eram mais de 20 mil, e, toda manhã, metade era empregada. Com a recessão, o mercado encolheu, e hoje, não passam de 250 ofertas de trabalho por dia. O Japão envelheceu. Kamagasaki também. "Aqui, a prioridade não é mais a defesa das condições de trabalho, mas uma política social para os idosos", diz Minoru Yamada, que dirige uma organização assistencial da prefeitura.
Segunda maior economia do mundo, o Japão tem um dos mais elevados índices de pobreza entre os países desenvolvidos. Segundo um estudo do ministério dos Assuntos Sociais, publicado em outubro, 15,7% dos japoneses - ou seja, um em cada seis - , dispunham em 2006 de menos da metade da renda média anual (ou seja, 1,14 milhão de ienes, o equivalente a R$ 22 mil). "Uma situação que está entre as piores da OCDE [Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico]", admitiu o ministro da Saúde e do Trabalho, Akira Nagatsuma.
Por muito tempo, o governo ignorou a pobreza, temendo reconhecer ali um fracasso nacional. Mito de uma sociedade que se considerava igualitária: a pobreza não existia; ela era um problema individual, não social. "A grande exclusão não é o resultado de uma crise: é um fenômeno persistente de nossas sociedades", lembra Xavier Emmanuelli, ex-secretário de Estado para a Ação Humanitária e fundador do SAMU social, que veio ao Japão para explorar as possibilidades de colaboração com organismos locais.
Em "Kama", como é chamada aqui, enquanto se tem força física, é possível se virar, - ou seja, sobreviver em um mercado de trabalho amplamente controlado pelo submundo e sujeito à violência. Mas não se sai dos "cortiços sem volta": Sanya em Tóquio, Kotobuki em Yokohama, Kama em Osaka. Nessas "cidadelas sem muros" que não se distinguem em nada do resto da cidade a não ser pela sua fauna de miseráveis, sempre se morre na rua. Uma morte muitas vezes anônima.
Um terço dos 25 mil habitantes de Kamagasaki têm mais de 60 anos e vivem da previdência social. Outros - 1.000, 2.000 - , não são recenseados. Eles não respondem às pesquisas administrativas, que implicam o contato com suas famílias. Eles romperam com seu passado e muitas vezes "evaporaram". Aqui e ali, anúncios de parentes sem notícias. Um nome, algumas palavras: "Volte, nós te protegeremos", "Papai está morrendo..."
O sol se põe, e assim como um exército desbaratado, cerca de 500 a 600 pessoas se dirigem aos dois albergues de até 1.400 vagas, carregando suas trouxas, alguns andando lentamente e muitos deles imundos. Às 5 horas da manhã, eles voltam a ganhar as ruas. E começa a se estender um tempo sem ritmo: uma liberdade abissal.
Cruza-se com errantes, sujos e hirsutos, de rosto amassado, cujos passos indecisos não levam a lugar nenhum; silhuetas sem idade, de ombros submissos, uma garrafa de saquê nas mãos; vociferantes ou comatosos. Alguns, completamente embriagados, já jazem na calcada. Pequenos grupos se aglutinam em torno de uma tábua sobre uma caixa: por algumas centenas de ienes, o espaço de um instante, os dados são sinônimo de esperança para esses homens que não têm mais nenhuma. Marginais ficam à espreita, caso apareça a "tempestade", ou seja, a polícia.
Assim que anoitece, instala-se um estranho silêncio, rompido pelas tosses catarrentas e pelos pigarros vindos das caixas de papelão dos que dormem na rua. Pôsteres que representam micróbios pendurados em um personagem alertam contra a tuberculose: em "Kama", essa doença da pobreza tem um índice comparável ao do Camboja. Um acompanhamento melhor contém sua propagação de alguma forma. E ainda há o alcoolismo e os problemas mentais. Os hospitais muitas vezes recusam os loucos da rua: "Tentamos acalmá-los. Que mais podemos fazer?", explica um pastor.
Em "Kama", a expectativa de vida é a mais curta de um país onde a longevidade é uma das mais altas do mundo. Mas também há manhãs luminosas, como aquela captada pelo autor de uma pichação: "A alvorada sorri. Ainda estou vivo".
Tradução: Lana Lim
Texto do Le Monde, reproduzido no UOL.
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