O enterro de um exemplo
Vitor Hugo Soares
De Salvador (BA)
De janela do apartamento em Salvador, na larga entrada da Baía de Todos os Santos, miro o Sul, na direção do Rio da Prata, e aperta a vontade de estar em Buenos Aires. Como tantas vezes, queria abraçar, fazer troça ou me solidarizar com os argentinos nesta semana de tormentos portenhos: a brava e notável cantora Mercedes Sosa foi internada com graves problemas de pneumonia e desidratação; a seleção de Diego Maradona foi surrada pela Bolívia por 6 a 1, e - como se não bastasse -, morreu o ex-presidente Raúl Alfonsin, pai exemplar da frágil democracia no país, órfã, agora, no meio do tufão de mais uma crise.
O jornalista vence pruridos de homem de pouca fé e roga ao glorioso Santo Antônio pela saúde de "La Negra". Faz uma pausa para tirar um sarro dos vizinhos no futebol e depois se concentra nas pungentes imagens do velório e enterro de Alfonsín. Mais de 60 mil pessoas passam a madrugada fria de quinta para sexta-feira na fila, para o último adeus ao líder. Na rua - mostram as TVs e registram os jornais -, a multidão serpenteia em fila colossal e as pessoas murmuram respeitosas sobre o político e governante que se foi: "Honradez. Decência. Ética. Exemplo".
O pensamento voa para a capital portenha e pousa no momento em que o dirigente da União Cívica Radical, como um Quixote do Parque Palermo, enfrentava, de um lado, a brutalidade do regime dos generais, e, do outro, a fúria do peronismo quase hegemônico na Argentina naquele tempo. Alfonsín ensaiava ali os passos políticos e estratégicos que o conduziriam à surpreendente vitória na campanha de 1983. Então o repórter estava de férias do Jornal do Brasil e andava por Buenos Aires. Antenas e faro ativados para entender o que acontecia bem na frente do seu nariz e assim foi parar no meio de uma manifestação política na sede da UCR, onde o emergente radical - na verdade um socialista liberal de centro-esquerda - era anunciado como orador principal.
O personagem impressionava à primeira vista. Moreno ("morocho" como dizem os portenhos), rosto sempre sério, cabeleira farta e bigode sem um fio sequer de cabelo branco. E um apelo especial de conteúdo: o envolvente e consistente discurso que fugia inteiramente da barulheira retumbante dos bumbos e dos chavões tortuosos da retórica peronista. Além, evidentemente, do empolgante hino radical que enchia o ambiente de festa e euforia. Decorei na hora e passei logo a entoar junto com a "massa" presente.
Respirava-se ali um livre e animado ambiente de campanha eleitoral, que contaminava e envolvia. O repórter viajava em companhia do amigo e saudoso compadre, Pedro Milton de Brito, ex-presidente da secção baiana da Ordem dos Advogados do Brasil, notável jurista do Conselho Federal da OAB e combatente da primeira hora em defesa dos direitos humanos na Bahia e no País. Ele mais empolgado ainda.
Naquela noite Alfonsin já exibia as qualidades escutadas nos murmúrios populares esta semana em seu velório. Faltava só dar conseqüências práticas ao discurso corajoso, lúcido e inteligente. Isto ele faria nos anos seguintes, depois de eleito primeiro presidente de uma democracia que precisava, sem perda de tempo, exorcizar os demônios da mais implacável ditadura do continente.
Isto Alfonsin não conseguiu de todo, mas avançou até onde lhe foi possível, com decisão e audácia invulgares em políticos e governantes deste lado da linha do Equador. Mesmo quando precisou pagar o alto preço do desgaste emocional e político que, seguramente, contribuiu para abalar a saúde e reduzir o tempo de vida de uma figura fundamental da Argentina e da América Latina. Quase tudo mais foi dito ou mostrado nas cenas do velório e do enterro. Só falta registrar aqui as palavras de um anônimo argentino sobre Alfonsin e o significado de sua presença, recolhidas de um jornal portenho.
"A recuperação da democracia argentina foi obra de todo povo, e sobre isso não há dúvidas, mas Alfonsin foi o catalisador desta energia para formas republicanas, progressistas (no bom sentido da palavra) e democráticas. Mais além deste merecido reconhecimento popular, creio que os dirigentes oficialistas e da oposição devem ler a mensagem deste povo, que creio é pedir que se retorne aos caminhos dos consensos, do diálogo e da tolerância. Alfonsín foi um homem honesto (como Irigoyen, Frondizi, Illia, Câmpora e o próprio De la Rúa), mas esta virtude não é o mais importante de seu legado. O que os argentinos nestes dias reivindicaram em sua figura é a tolerância, sua abertura ao diálogo e sua intransigência republicana".
Na mosca, anônimo portenho. Pena que o amigo Pedro também já tenha partido, e não possa mais cantar comigo aquela estrofe do hino da UCR, que tanto nos emocionou naquele comício em Buenos Aires. "Luche, luche, luche, no dejes de luchar"... Saudades!
Texto do Terra Magazine. Foto da EFE, também na página do Terra Magazine.
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