sábado, dezembro 13, 2008

Geração do deserto?

AI-5 - A geração do deserto

INICIEI O ano de 1968 em Cuba, terminei-o numa cela do Batalhão de Guardas, em São Cristóvão, na qual me botaram ao lado de Joel Silveira desde o dia 13 de dezembro daquele ano. Anteriormente, já havia sido preso três vezes, e não me assustei com a quarta. Ouvira pelo rádio a leitura do AI-5, na véspera estivera no apartamento do Marcito, que dera o pretexto final para o completo fechamento do regime militar.
Fora, de certa forma, minha última participação política daqueles tempos. Ausente do país, não participara de passeatas e, sinceramente, não as apreciava, sempre me integrei ao bloco individualista do eu-sozinho. Conseguia a façanha de ficar só e mal acompanhado.
Naquela noite, uma patrulha foi ao Leme me buscar, botaram-me numa Kombi sob a alegação de que o comandante da Região Militar queria falar comigo. Evidente que não acreditei no convite, mas não criei caso. Enfiaram-me um capuz preto que fedia a suores alheios, não vi para onde me levaram. Vinte minutos depois estava num enorme pátio militar, em que na parede principal, iluminada, estava a frase: "A Guarda morre mas não se rende". Fiz o contrário: rendi-me e não morri.
Levaram-me ao coronel que comandava o batalhão. Um sujeito educado, constrangido em sua função de carcereiro. Mais tarde, no Natal e no Ano Novo que ali passamos, Joel e eu recebemos a ceia e o vinho que ele nos mandou de sua própria casa. Não lhe guardei o nome nem as feições. Os militares ainda não tinham se acostumado às novas funções da repressão política; nas prisões seguintes, o clima era outro, de explícita truculência.
Um oficial muito jovem, gorducho, excitadíssimo, levou-me à cela, mas antes fez questão de me mostrar um grupo de soldados que entravam numa viatura. E deu a informação: "Eles vão pegar e fuzilar o Juscelino e o Lacerda!". Não estava assustado até então. Achava que aquela prisão era o costumeiro arrastão policial, na base do "prendam os suspeitos de sempre" -que fez parte daquele filme com Humphrey Bogart e Ingrid Bergman. Acontece em todos os lugares e por todos os motivos.
Na ocasião, não tinha nenhum elemento para duvidar do que o oficial me dizia. Na noite anterior, entre os amigos que foram abraçar Marcito, eu disse que o discurso dele na Câmara Federal fora um mero pretexto para o iminente endurecimento do regime. A verdadeira causa era o pavor dos militares por uma frente ampla que reunisse as três maiores lideranças civis da época: Jango, JK e Lacerda. O primeiro estava no exílio, os dois outros, em atividade, mesmo após a Frente Ampla ter sido dissolvida.
Num lance radical, o regime bem que poderia aproveitar a ocasião para eliminar o resíduo daquele movimento que realmente assustou os militares. Bem verdade que, anos depois, os três líderes morreram numa operação que um coronel chileno, comandante do Dina, em ofício enviado ao chefe do SNI brasileiro, chamou de "limpeza de terreno".
O fato é que, quando entrei na cela, o Joel Silveira, com uma febre de 39 graus, perguntou-me pelas novidades. Disse o que acabara de saber: "Vão fuzilar JK e Lacerda". Joel rosnou um palavrão e voltou a dormir. Sem febre, custei a relaxar. Não acreditava numa fuzilaria geral, irrestrita e segura, mas alguma coisa de mais grave poderia acontecer, como de fato aconteceu ao longo daquele tempo que o lugar comum classificou de "anos de chumbo".
Lacerda e JK não foram fuzilados, mas foram presos, como milhares de outros cidadãos que formavam o bloco dos "suspeitos". Não houve reação na sociedade civil contra o ato de força -nem poderia haver. Ao contrário do golpe de 1964, em que ainda eram possíveis o protesto e até mesmo a reação, em 1968 nada se podia fazer a não ser a polêmica e inútil alternativa da luta armada: a guerra civil.
Amanhã, aquela noite de 13 dezembro fará 40 anos. A mesma quantidade de anos que formou a geração do deserto de um povo que buscava a terra que lhe fora prometida. Como em qualquer outra terra, a maior conquista -e não a simples promessa que pode ser feita a qualquer povo- não é a paz, mas a liberdade.

Texto de Carlos Heitor Cony, na Folha de São Paulo, de 12 de dezembro de 2008.

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