quinta-feira, julho 17, 2008

"24 Horas" na vida real

O seriado "24 Horas" na vida real

FRANK RICH
DO "NEW YORK TIMES"

Sabemos como se parece uma Casa Branca criminosa graças a "The Final Days", o clássico relato do desmoronar de Richard Nixon escrito por Bob Woodward e Carl Bernstein. O caldeirão de mentiras, paranóia e espionagem ilegal ferveu e derramou, até que, no final, era "cada um por si".
"The Final Days" foi publicado em 1976, dois anos depois de Nixon abdicar da Presidência.
No caso da Presidência Bush, nenhum jornalista está esperando até o cadáver ser levado embora. A mais recente ilustração disso está sendo lançada esta semana por Jane Mayer, da "The New Yorker", que há anos cobre o emprego da tortura na guerra ao terror.
Alguns trechos de seu livro, "The Dark Side", parecem saídos de "The Final Days". Ficamos sabendo, por exemplo, que em 2004 dois funcionários republicanos do Departamento de Justiça tinham ficado "tão paranóicos" que "chegaram a pensar que poderiam estar correndo perigo físico". Com medo de serem grampeados, passaram a falar em código.
Os homens em questão eram o vice do secretário de Justiça John Ashcroft, James Comey, e um secretário de Justiça assistente, Jack Goldsmith. O pecado deles tinha sido desafiar o "chefão mafioso" da Casa Branca, [o vice-presidente] Dick Cheney, e seu homem de confiança, David Addington, quando estes desrespeitaram a Convenção de Genebra, convertendo a tortura em lei extra-oficial.
Comey e Goldsmith já deixaram a Casa Branca há tempo.
Mas o vice-presidente Cheney e David Addington ainda exercem seus cargos, graças a um presidente, um secretário da Justiça (Michael Mukasey) e um diretor da CIA (Michael Hayden) que, mesmo agora, se recusam a excluir a tortura de maneira terminante.
De acordo com o retrato da Casa Branca traçado por Mayer, o presidente é uma figura secundária, até passiva, e os motivos citados por Cheney para restaurar os poderes do Executivo em estilo Nixon são, teoricamente, desinteressados. Dominados pelos cenários vistos no seriado televisivo "24 Horas", eles apenas querem proteger os EUA de outros ataques terroristas.
Mas será que estamos realmente em segurança? Neste verão [do hemisfério Norte] em que a Al Qaeda e o Taleban reganham força, essa pergunta é ainda mais urgente que as questões morais e legais concernentes à tortura.
A declaração de Bush em 2005 de que "nós não torturamos" já foi exposta como mentira faz tempo. Antonio Taguba, o general da reserva que investigou para o Exército os abusos contra detentos, concluiu que "já não há dúvida alguma" de que "foram cometidos crimes de guerra".
Jane Mayer trouxe à tona outro veredicto condenatório: investigadores da Cruz Vermelha afirmaram à CIA em 2007 que os EUA vêm praticando tortura e estão suscetíveis a acusações por crimes de guerra.
Figuras do alto escalão do governo Bush começaram a ficar com as mãos suadas, inseguras sobre onde deixaram suas impressões digitais. Tanto se especula que processos por crimes de guerra serão abertos em tribunais estrangeiros ou internacionais que Lawrence Wilkerson, o ex-chefe do Estado-Maior do [ex-secretário de Estado] Colin Powell, já aconselhou publicamente funcionários e ex-funcionários do governo a "nunca viajarem para fora, exceto, possivelmente, para a Arábia Saudita ou Israel".
Enquanto esperamos a ação lenta da justiça, há temores imediatos aos quais voltar nossa atenção. O livro de Jane Mayer reforça o argumento de que o emprego da tortura pelos EUA não apenas traiu os valores americanos, mas também enfraqueceu nossa segurança nacional e continua a fazê-lo.
Na realidade, a tortura pode estar possibilitando ataques futuros, e não apenas porque fotos de Abu Ghraib vêm sendo usadas por jihadistas para recrutamento. Não menos destrutivas são as confissões falsas obtidas de presos torturados. A avalanche de informações errôneas desde o 11 de Setembro vem prejudicando os julgamentos de suspeitos, deixando outros culpados escapar e fazendo os militares americanos partir em buscas inúteis.
É por isso que, em última análise, a corrupção da Casa Branca de Bush supera a de Nixon. Agora, o crime é pior que seu acobertamento, e o castigo pode recair sobre todos nós.


Tradução de CLARA ALLAIN
Texto do The New York Times, republicado na Folha de São Paulo, de 14 de julho de 2008.

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1 Comments:

Blogger weiss said...

O bom que que a maioria do povo americano não concorda com a tortura e se provada pede punição por questão de princípios. Muitos americanos já se envergonham pelo mundo quando percebem que não são tão "queridos" em outros países, culpa do louco de plantão na Casa Branca.

10:10 AM  

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