quinta-feira, janeiro 31, 2008

A democracia cristã chilena está em decomposição

A democracia cristã chilena está em decomposição

Juan Guillermo Tejeda
Santiago, Chile

A expulsão do senador Adolfo Zaldívar, que veio a calhar devido às atitudes provocadoras que ele vinha adotando, terminou por demonstrar que, sem esse baluarte da direita, a Democracia Cristã do Chile está a caminho de se esfacelar. Gabriel Valdés, um dos militantes patriarcais do partido, que foi ministro, senador, diretor de muitos órgão públicos importantes e agora se tornou embaixador, reconhece, de maneira quase psicanalítica, que seu partido demonstra interesse demasiado por cargos mas não muitos ideais, o que o torna um pouco parecido com a Máfia. De maneira ainda mais audaciosa, Marcelo Trivelli acrescenta que é preciso acabar com a hipocrisia, o nepotismo e a mediocridade na agremiação.

A Democracia Cristã está sofrendo e se desfazendo, e com ela sofre igualmente a alma do Chile, porque o país era muito mais democrata cristão do que imaginamos. A Democracia Cristã soube encarnar durante décadas o senso comum do país, a tendência ao meio termo, a não se definir demais por qualquer posição e a manter o bom relacionamento com todos, essa coisa mais ou menos que tanto caracteriza o Chile.

Antes da Democracia Cristã, cabia aos radicais acolchoar a sociedade, eliminar as arestas de crueldade da vida coletiva. Às complexidades do século 20, com suas guerras mundiais, a ameaça do fascismo e do comunismo, a luta entre oligarcas e operários, e crises econômicas, o Partido Radical opunha a beleza serena das tradições do país. Um belo assado acompanhado por um purê picante e um bom vinho tinto bastava para descontrair qualquer ambiente. Os radicais eram mais amorenados, mais provinciais, mais adeptos dos usos e costumes tradicionais, gente cordial, adepta da camaradagem. Republicanos autênticos, eles foram a ferramenta que o Chile encontrou para evitar a ditadura e a guerra civil, que mesmo assim aconteceram tantas vezes. Os radicais se identificavam com a causa da educação pública, com a promoção das ferrovias, com as instituições burocráticas da república, nas quais os cargos eram conquistados exatamente em jantares, banquetes e conversas. Apesar de todos esses pequenos vícios, o sistema respirava e funcionava.

Mas aconteceu com os radicais a mesma coisa que está acontecendo agora com os democratas cristãos. O idealismo deles começou a se desfazer, em parte porque realizaram os propósitos que haviam levado à criação do partido: transformar a sociedade chilena em um espaço menos dado ao culto à aristocracia, mais laico, com mais jeito de classe média. A comida gordurosa caiu em desgraça por conta do colesterol e do culto à boa forma física, os casacos de pele de camelo saíram de moda, o tanto e o bolero foram substituídos pelo rock, as famílias tradicionais do radicalismo se dividiram e as pessoas deixaram de reagir à retórica tradicional das homenagens e dos brindes.

A Democracia Cristã foi uma invenção católica e de escola de padres que surgiu para disputar com os radicais a afeição da classe média, nos anos 60, batalha da qual terminou por sair vitoriosa. O sentido profundo da Democracia Cristã era o de que, em lugar do comunismo e do capitalismo - ambos ruins, especialmente o comunismo-, o melhor era que desenvolvêssemos nosso modelo próprio, de casinhas modestas, comida simples e veraneio em El Quisco para almoçar frango em companhias das crianças - de preferência, muitas crianças-, desfrutando de pêssegos em calda como sobremesa.

Durante decênios os democratas cristãos representaram essa postura amena e vagamente conservadora, a posição do "gosto mas faz mal", "quero mas não devo", a mistura peculiarmente chilena de austeridade, timidez, arrivismo e devoção pelos padres, concursos de miss colégio e pelos carabineiros chilenos. A democracia Cristã conseguiu, com sucesso e sempre de acordo com as circunstâncias, se posicionar como antidireitista, antiesquerdista, pró-direitista e pró-esquerdista. Trata-se de um partido que teve todos os ódios e muitos carinhos mornos.

Mas hoje, quando o comunismo deixou de existir e o capitalismo parece dominar tudo aquilo que encontramos no mundo, os democratas cristãos já não sabem bem a que se dedicar. Parecem cansados, e suas roupas têm um jeitão interiorano. O papel que desempenhavam era o de mediar, moderar, baixar o volume, oferecer uma terceira via em um mundo bipolar. O cardápio que o mundo hoje nos oferece parece mais uma praça global de alimentação, com inúmeras opções e combinações possíveis, e a Democracia Cristã nada tem a acrescentar a essa refeição. O partido ficou órfão de projeto, portanto, e talvez seja por isso que Valdés sinta falta dos ideais, sempre mais importantes que os cargos. Como ninguém mais luta por ideais, resta a briga de foice por cargos, embaixadas, indicações. Magos do clientelismo político, grandes formigas da vida local e regional, do mundo do trabalho, eles hoje vivem como que em suspensão dentro da nuvem digital. A erotização dos costumes, o desprestígio dos padres, a felicidade obscena do mercado: tudo isso os incomoda. Falta-lhes horizonte, ainda que lhes reste o estilo. A tradição comunitária do partido não se enquadra ao liberalismo ou à transparência. A sociedade se tornou menos hipócrita, e as manobras episcopais da Democracia Cristã sempre precisaram das sombras, de zonas obscuras.

A mutação global sem dúvida porá fim aos democratas cristãos. Mas a queda não será rápida, por mais espetáculos dolorosos que tenhamos de assistir. No fundo de nossas almas castigadas, chilenos e chilenas trazem uma miniatura de carabineiro, um microclima interno composto por paróquia, casinha modesta comprada a prestação, cunhado que tem amigos no ministério, roupa que não é nem da moda e nem fora dela, bem como um colégio particular mas não muito sofisticado, para que as crianças se enquadrem bem. Talvez ninguém mais seja democrata cristão, mas é um alívio ter um vizinho que o seja.

Texto do Terra Magazine.

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