Os "correrias" do Primeiro Mundo
LUIZ GONZAGA BELLUZZO - Folha de São Paulo
"A falsificação de preços é um conluio entre os poderosos do mundo para lesar os mais fracos" |
A POLÍCIA Federal conta: 70% das importações de produtos de informática e telecomunicações realizadas pela Cisco eram subfaturadas. A manipulação dos preços de transferência, com o propósito de burlar o fisco, era perpetrada, de acordo com o relatório da PF, na matriz americana. Digo manipulação porque as mercadorias entravam no país abaixo do custo de produção, incluída a margem de lucro da empresa.
Quem paga a diferença? A resposta é fácil: o Estado brasileiro não recolhe os impostos devidos, os concorrentes nativos ou estrangeiros são bigodeados pelos espertalhões e, finalmente, os trabalhadores brasileiros (com uma taxa cambial mais favorável) poderiam estar empregados na produção dos equipamentos, peças e componentes importados, o que geraria mais receita fiscal. Certo Mark Smith, diretor-gerente para o hemisfério ocidental da Câmara Americana de Comércio, declarou que "o subfaturamento é comum no Brasil".
No Brasil e no mundo, diria o empresário Raymond Baker, autor do livro "Capitalism's Achilles Heel", com o subtítulo "Dirty Money and How to Renew the Free Market System". Baker declara-se um entusiasta do livre comércio. Manifesta, no entanto, sua decepção e preocupação com as práticas das grandes empresas transnacionais que deformam o sadio exercício do intercâmbio de mercadorias.
Ele diz que aproximadamente 65 mil empresas internacionalizadas realizam operações transfronteiras. As transações entre matrizes e filiais representam, segundo Baker, de 50% a 60% das trocas internacionais. Uma fração importante das transações é feita com preços falseados. "Isso serve para eliminar impostos, evitar controles aduaneiros e acumular dinheiro secretamente.
A falsificação de preços é realizada diariamente, em todos os países, numa larga fração das operações de importação-exportação."
"Essa é a técnica mais comum para gerar e transferir dinheiro sujo, dinheiro que viola a lei na sua origem, em seu movimento e em seu uso. A falsificação de preços é um conluio entre os poderosos do mundo para lesar os mais fracos. O fato é que para cada dólar, euro, libra, peso, rublo ou outra moeda qualquer que se move para fora dos países mais pobres, há um produtor ou financista do Primeiro Mundo que facilita a operação."
Baker é impiedoso: a combinação entre falsificação de preços de transferência, paraísos fiscais, empresas fantasmas, jurisdições secretas pode ser comparada "ao tráfico de drogas, ao crime organizado, ao terrorismo e aos funcionários corruptos". Os executivos das múltis contribuem para a manutenção desse sistema.
Imagino que, à semelhança da controvérsia Huck-Ferréz, o deplorável episódio Cisco vá provocar um maremoto de indignação contra as malfeitorias dos "correrias" do Primeiro Mundo. Os impostos surrupiados aos brasileiros talvez servissem para financiar a educação, a saúde e a segurança dos cidadãos de Pindorama, fossem eles os "correrias" do Terceiro Mundo ou os legítimos e indefesos usuários de relógios Rolex.
LUIZ GONZAGA BELLUZZO , 64, é professor titular de Economia da Unicamp. Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).
Via Leituras e Opiniões.
Marcadores: crime, indignação, indignação seletiva, justiça, sonegação
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