quinta-feira, dezembro 28, 2006

"Antiestatal" - Folha de São Paulo, 27/12/2006

VINICIUS TORRES FREIRE

A mistificação antiestatal

NA REAÇÃO ao espetáculo de incompetência nos aeroportos houve dois tipos de chiliques sintomáticos entre "analistas" e comentaristas de mídia. Um chilique, da parte de sempiternos bajuladores de FHC, foi pespegar na vergonha aérea o apelido de "apagão", que surgira durante a catástrofe do racionamento de energia, pane muito mais grave e que na época merecera condescendência do pessoal do chilique aéreo. Mas passemos.
O outro chilique manifestou-se na indignação "cidadã" contra o Estado, no caso representado pelo governo Lula. Agora, que a autoria do vexame aéreo passou a ser assinada também por uma empresa privada, a turma do chilique antiestatal assovia, olha para o lado: ficou difícil falar mal do governo. Mas em breve virá alguém dizer que, como Lula danou as agências reguladoras, novas e antigas, a supervisão do setor privado virou bagunça. Culpa do governo.
O chilique aéreo é um aspecto da mistificação antiestatal, pensamento dominante desde os anos 90. Mas também é o reverso da medalha da ambivalente tara nacional pelo Estado, do desejo sadomasoquista de vergastar governos e a eles se sujeitar a fim de pedir benesses. O Estado é doador e culpado universal.
Considere-se o porta-voz liberalóide padrão, em bancos, mídia, partidos ou mesmo no governo. Observe-se como pronuncia, em odor de superioridade moral e intelectual, expressões do tipo "quem paga a conta da gastança é o contribuinte".
Muita vez trata-se de pose picareta de quem apenas não quer pagar imposto. Mas o que interessa mais é o fato de que, no palavrório de tais pregadores da cidadania tributária, o sagrado dinheiro do contribuinte parece desaparecer nas profundezas do inferno estatal. O Estado parece uma entidade fora do tempo e do espaço sociais e políticos. Ninguém parece se beneficiar dos fundos públicos que passam pelo Estado, ninguém influencia a coleta e a redistribuição desses dinheiros.
Mas 8% do PIB "voltam" para a sociedade em forma de benefícios do INSS. Outros 8% retornam em forma de pagamentos de juros para classe alta e instituições financeiras.
E aí já se vão dois terços do que o governo federal arrecada em impostos. Outros porcentos mais voltam na forma de subsídios para empresas, educação e saúde de ricos, para estradas que levam a casas de campo ou praia (e ninguém quer pagar pedágio, quando os há). Quase exaurido, o Estado ainda deve ser responsável por prover a sociedade, inclusive a classe alta mimada.
Há séculos se sabe que os representantes do Estado de fato também empregam as instituições de governo para seus fins particulares e, não raro, para oprimir setores sociais.
Mas no Brasil do chilique liberalóide e da morte do pensamento político, o Estado é a pura e permanente encarnação do mal, um monstro independente, em absoluto desconectado de pressões sociais. Por outro lado, é o provedor universal. É sempre culpado pela "sociedade", também tida como miticamente una, sem divisões, pela imperfeição do mundo.
Essa mesma "sociedade", ou setores sociais, vive em apatia política, tomada pelo desejo ambivalente de servidão e de rapina, de se aninhar no colo do grande pai protetor e de também violentá-lo.

vinit@uol.com.br

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/dinheiro/fi2712200605.htm