Da Agência Carta Maior - Flávio Aguiar: Minority Report
Colunista: Flávio Aguiar
19/10/2006
DEBATE ABERTO
O dossiê do dossiê (IV): Minority report
A eleição está deixando meu amigo Saul Leblon com incontinência epistolar. Olhem só a mensagem que ele me mandou, citando o filme ‘Minority report’ e a última edição da revista Veja, que tenta arrastar Freud Godoy à cena do dossiê e ainda chama o Marco Aurélio Garcia de 'bin laden'.
Data: 16/10/2006
“Meu caro Flávio:
Você se lembra daquele filme com Tom Cruise, o “Minority report”? Nele
um serviço de segurança do futuro dispunha de meios para identificar e
prevenir crimes. Quando aparecia o nome do criminoso potencial lá na
bola de cristal deles, as equipes saíam à cata do suspeito para detê-lo
e impedir a consecução do malfeito. No filme tudo acaba dando errado,
pois o serviço se baseia numa presunção de culpa típica das sociedades
autoritárias, além de outros problemas que não vou adiantar aqui para
não tirar o suspense de quem ainda não o viu. Em todo caso, a idéia de
impedir o crime se justificava no filme pela sua natureza: tratava-se
sempre de um homicídio. Se não houvesse prevenção, a vítima iria para o
beleléu.
Nesta semana várias coisas me trouxeram o filme à memória. Uma delas foi
o clima inquisitorial da revista Veja, com sua matéria de capa “Limpeza
de alto risco”, em que tenta arrastar Freud Godoy à cena do crime, quero
dizer, à cena do dossiê, e logo explicarei a diferença. Clima inquisitorial? Não só isso: deselegante ao extremo. Lá pelas tantas (pág. 58) chama o presidente interino do PT de “O bin laden Marco Aurélio Garcia”. Ora, qualquer um que conheça Marco Aurélio sabe da inadequação da referência.
Mas o macartismo explícito vem numa frase da reportagem de capa, depois
de tentar mostrar, com base em documentos anônimos (como anônima era a fonte das famosas fotos do dinheiro no hotel, que no fim não era tão
anônima assim) que Freud negociou com Gedimar Passos e com outras gentes (há até insinuações sobre dinheiros) o desmentido deste quanto à
participação do primeiro no episódio desastrado da tentativa de compra
do dossiê Vedoin/Serra/Barjas Negri.
A frase diz (pág. 49): “A favor de Freud, é claro, se pode levantar a
hipótese de que um homem inocente tem o direito de tentar de todas as
maneiras, mesmo as mais desesperadas, provar sua inocência”. Que ato
falho do redator de plantão, hein, Flávio? Além de declarar Freud
inocente, a frase transforma um direito numa hipótese, e inverte o
princípio consagrado de que a prova cabe à acusação, não ao acusado. Ou
seja, ela saiu diretamente dos princípios que norteavam os processos do
Santo Ofício, mais conhecido como Inquisição, em que o ônus da prova era
sempre do acusado que, em geral, nem sabia qual era a acusação que
pesava contra ele.
Mas há mais, meu caro Flávio. A leitura da matéria brilhante de Raimundo
Pereira em Carta Capital, em que ele conta como foi a urdidura da trama das fotos e da ocultação de quem era a fonte, o delegado Edmilson Bruno, por parte da imprensa envolvida, também me lembrou do filme Minority report, mas por outra razão. Edmilson Bruno foi quem deteve os
aqualoucos, como diz você, do PT naquele hotel em S. Paulo.
Mas veja bem, meu caro Flávio, esta operação da PF não seguiu seu padrão usual. Vamos voltar no tempo, meu caro, vamos recordar cenas mostradas à larga de casos semelhantes, em que vai se pagar uma propina em troca de um favor. A filmagem é feita até completar-se o delito, a troca de mãos do dinheiro e do objeto ou a promessa do favor. Depois a polícia intervém e pega os caras com a mão na botija, no caso, no dossiê. Neste caso não. Curioso, hein, Flávio? Os agentes envolvidos agiram como no “Minority Reporto”. Os supostos vendedores do dossiê foram barrados
antes, e o flagra no hotel deu-se apenas com os atrapalhados compradores.
Começa, caro, que comprar informação não é crime. Tratou-se portanto de
um flagra em cima de um não-crime, que sequer chegou a acontecer: o
não-crime que não aconteceu! Crime poderia estar na obtenção da vultosa
soma, se irregular. Assim mesmo, para caracterizar o ilícito completo,
mister se fazia testemunhar a operação em execução, não apenas o projeto de eventualmente executá-la: teria que haver diálogos, troca de idéias, avaliações, mostrando a intenção de usar de modo ilícito o tal de dossiê – que na verdade nem chegou a S. Paulo.
A forma da operação mostra que, no fim de contas, seu objetivo era e seu
resultado foi */exibir o dinheiro e preservar o dossiê/* – se é que ele
existe de fato. De quebra, envolveu-se Freud. Tanto era esse o objetivo
da operação comandada pelo delegado Edmilson que, como seu objetivo
falhou, pela intervenção republicana da cúpula da PF, o delegado
tenazmente mentiu aos colegas, foi ao local onde se encontrava uma pilha
de dinheiro, e a fotografou, entregando-a com aqueles salamaleques de
palavrões acobertados pela imprensa aos seus destinatários primevos: os
jornalistas de plantão. Na entrega, só faltaram os emissários da equipe
de TV da campanha de Alckmin, que estavam na sede da PF quando os
detidos e a grana lá chegaram. Se o flagra fosse dado no hotel durante
ou após a troca de mãos entre o dinheiro e o tal do dossiê, obrigação
seria mostrar ambos – dossiê e dinheiro – e isso não estava, como pode
se deduzir por sua forma, nos planos da operação. O dossiê que chegou às
telas da internet e das emissoras de TV era uma bobajada de cenas
constrangedoras, sim, mas inócuas do ponto de vista de incriminação.
Examinado pelos supostos compradores, talvez a conclusão pudesse ser a
de que não valia a pena, e o flagra não teria razão de ser.
Diz-se em comentários na imprensa que sim o dossiê existe de fato, que o
deputado Fernando Gabeira o tem, mas este ultimamente só se dedica a
enxovalhar Lula e os petistas e a preservar os tucanos, diz-se também
que a PF do Mato Grosso o tem e que a CPI também o tem, mas enfim, o
dossiê parece mais resguardado que o famoso segredo de Fátima, ou que a verdade sobre a morte de Kennedy.
Meu caro Flávio, por hoje chega. Mas mais teremos, porque a capacidade
de gerar culpados na imprensa, sem direito à “hipótese” da defesa, só
parece se igualar à capacidade de alguns petistas em colocar os pescoços
– o deles e o nosso – na guilhotina”.
http://cartamaior.uol.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=3359
0 Comments:
Postar um comentário
<< Home