Cláudio Weber Abramo: Toma, Que o Filho é Teu - Folha de São Paulo, 06/10/2006
Os comentários morais sobre o 1º turno são um moralismo temperado de desinformação, não sem grandes doses de hipocrisia
Os resultados das eleições de 1º de outubro deram origem a uma tipologia de comentários segundo os quais, em síntese, o brasileiro teria se entregado de vez à imoralidade. O fato de a maioria do eleitorado acreditar (certa ou erradamente, não importa) que o presidente Lula tenha tido conhecimento prévio dos malfeitos praticados por altos dirigentes de seu partido e, mesmo assim, ter-lhe dedicado quase 50% dos votos é visto por determinados observadores como o fim dos tempos.
Recairia sobre os paulistas dose alentada de culpa por essa pretensa decadência de costumes, por terem conduzido ou reconduzido ao Parlamento indivíduos como o sr. Paulo Maluf e uma quantidade não regulamentar de mensaleiros e outros implicados em crimes diversos.
Trata-se, tudo isso, de moralismo temperado de desinformação, não sem grandes doses de hipocrisia. Querem esses comentaristas impingir a noção de que julgamentos de natureza moral teriam precedência sobre quaisquer outras circunstâncias nas decisões materiais, como é a do voto. Mas o que entra em jogo nas decisões materiais são sobretudo considerações de natureza material.
Para os 70% de eleitores de Pernambuco ou da Bahia que votaram em Lula, o que conta é que os R$ 60 (em média) do Bolsa Família fazem diferença concreta em suas vidas. Os números mostram isso objetivamente. O nível de consumo subiu nessas populações.
É claro que R$ 60 não são nada para o autor das presentes mal traçadas, para o leitor ou para os que se comprazem em condenar moralmente o sujeito miserável para quem esse dinheiro faz diferença. O trágico é que esses Torquemadas chorosos não têm noção do fato de que a vida desses miseráveis muda, sim, radicalmente por causa de miseráveis R$ 60 por mês.
Nunca foi tão verdadeira a máxima de que a pior colonização se dá na cabeça. No caso, é uma colonização de classe social. Para eles, a miserabilidade brasileira é uma abstração, reduzida a índices que lêem aqui ou ali.
Comportam-se como freqüentadores de shopping center, convictos de que no Brasil só é pobre quem quer.
São também hipócritas, pois, sem sombra de dúvida, em suas trajetórias profissionais terá havido ocasião de terem relegado a segundo plano algum julgamento moral que formaram a respeito de subordinados, superiores hierárquicos ou patrões. Lastimam-se essas freiras do pensamento pequeno-burguês pelo futuro moral do Brasil devido ao fato de os alagoanos terem eleito Collor para o Senado. Esquecem-se de que Collor é o sátrapa local das comunicações e de que Alagoas é o fim da picada, um Estado dominado pelo que há de pior entre as oligarquias rurais nordestinas. Queriam esses moralistas lacrimejantes que o alagoano analfabeto raciocinasse como Afonso Arinos?
E Maluf? Foi, de fato, eleito deputado federal por São Paulo. Mas foram "os paulistas" que elegeram esse senhor? Teriam "os paulistas" mergulhado de cabeça no "rouba, mas faz" por causa disso e por causa de mensaleiros reconduzidos à Câmara? (Quanto aos sanguessugas, os patrulheiros se calam, sem dúvida porque o fato de terem sido rejeitados nas urnas desmente seu diagnóstico.)
Os eleitores que votaram em Maluf foram pouco menos de 740 mil, num colégio eleitoral de 28 milhões, dos quais 23,77 milhões compareceram às urnas. Quem são os eleitores típicos de Maluf? Formam uma direita boçal cuja preocupação fundamental na vida é saber se a rua em que moram será protegida por cancela e seguranças. Sem dúvida, esses também condenam a corrupção, mas vêem em Maluf uma resposta para seus anseios. E eles são só 740 mil, não são 24 milhões. (Celso Pitta, que, segundo a teoria da decadência moral, deveria ter sido eleito, recebeu 7.484 votos.)
Por fim, os mensaleiros. Entre eleitos e não eleitos, somaram 524.077 votos. A quem se devem esses votos? Devem-se à imprensa. Foi a imprensa brasileira que comprou a história da Carochinha de que o "propinoduto" gerenciado pelos dirigentes do PT tinha finalidade eleitoral. Muitos dos comentaristas que hoje se lastimam pela eleição de mensaleiros estiveram entre os que mais valentemente compraram a ficção do caixa dois eleitoral e que promoveram a inútil discussão sobre financiamento público exclusivo de campanhas eleitorais.
Apesar de ser absurdo dizer que um modelo de financiamento eleitoral, qualquer que seja, tem alguma espécie de efeito sobre o fato de uns indivíduos receberem propina num esquema de corrupção, foi exatamente isso o que uma quantidade extraordinária de formadores de opinião comprou e vendeu em 2005. Com isso, absolveram moralmente os mensaleiros. Esse filho é deles.
CLAUDIO WEBER ABRAMO, mestre em lógica e filosofia da ciência pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), é diretor-executivo da Transparência Brasil, organização dedicada ao combate à corrupção no país.
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http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz0610200609.htm
Os resultados das eleições de 1º de outubro deram origem a uma tipologia de comentários segundo os quais, em síntese, o brasileiro teria se entregado de vez à imoralidade. O fato de a maioria do eleitorado acreditar (certa ou erradamente, não importa) que o presidente Lula tenha tido conhecimento prévio dos malfeitos praticados por altos dirigentes de seu partido e, mesmo assim, ter-lhe dedicado quase 50% dos votos é visto por determinados observadores como o fim dos tempos.
Recairia sobre os paulistas dose alentada de culpa por essa pretensa decadência de costumes, por terem conduzido ou reconduzido ao Parlamento indivíduos como o sr. Paulo Maluf e uma quantidade não regulamentar de mensaleiros e outros implicados em crimes diversos.
Trata-se, tudo isso, de moralismo temperado de desinformação, não sem grandes doses de hipocrisia. Querem esses comentaristas impingir a noção de que julgamentos de natureza moral teriam precedência sobre quaisquer outras circunstâncias nas decisões materiais, como é a do voto. Mas o que entra em jogo nas decisões materiais são sobretudo considerações de natureza material.
Para os 70% de eleitores de Pernambuco ou da Bahia que votaram em Lula, o que conta é que os R$ 60 (em média) do Bolsa Família fazem diferença concreta em suas vidas. Os números mostram isso objetivamente. O nível de consumo subiu nessas populações.
É claro que R$ 60 não são nada para o autor das presentes mal traçadas, para o leitor ou para os que se comprazem em condenar moralmente o sujeito miserável para quem esse dinheiro faz diferença. O trágico é que esses Torquemadas chorosos não têm noção do fato de que a vida desses miseráveis muda, sim, radicalmente por causa de miseráveis R$ 60 por mês.
Nunca foi tão verdadeira a máxima de que a pior colonização se dá na cabeça. No caso, é uma colonização de classe social. Para eles, a miserabilidade brasileira é uma abstração, reduzida a índices que lêem aqui ou ali.
Comportam-se como freqüentadores de shopping center, convictos de que no Brasil só é pobre quem quer.
São também hipócritas, pois, sem sombra de dúvida, em suas trajetórias profissionais terá havido ocasião de terem relegado a segundo plano algum julgamento moral que formaram a respeito de subordinados, superiores hierárquicos ou patrões. Lastimam-se essas freiras do pensamento pequeno-burguês pelo futuro moral do Brasil devido ao fato de os alagoanos terem eleito Collor para o Senado. Esquecem-se de que Collor é o sátrapa local das comunicações e de que Alagoas é o fim da picada, um Estado dominado pelo que há de pior entre as oligarquias rurais nordestinas. Queriam esses moralistas lacrimejantes que o alagoano analfabeto raciocinasse como Afonso Arinos?
E Maluf? Foi, de fato, eleito deputado federal por São Paulo. Mas foram "os paulistas" que elegeram esse senhor? Teriam "os paulistas" mergulhado de cabeça no "rouba, mas faz" por causa disso e por causa de mensaleiros reconduzidos à Câmara? (Quanto aos sanguessugas, os patrulheiros se calam, sem dúvida porque o fato de terem sido rejeitados nas urnas desmente seu diagnóstico.)
Os eleitores que votaram em Maluf foram pouco menos de 740 mil, num colégio eleitoral de 28 milhões, dos quais 23,77 milhões compareceram às urnas. Quem são os eleitores típicos de Maluf? Formam uma direita boçal cuja preocupação fundamental na vida é saber se a rua em que moram será protegida por cancela e seguranças. Sem dúvida, esses também condenam a corrupção, mas vêem em Maluf uma resposta para seus anseios. E eles são só 740 mil, não são 24 milhões. (Celso Pitta, que, segundo a teoria da decadência moral, deveria ter sido eleito, recebeu 7.484 votos.)
Por fim, os mensaleiros. Entre eleitos e não eleitos, somaram 524.077 votos. A quem se devem esses votos? Devem-se à imprensa. Foi a imprensa brasileira que comprou a história da Carochinha de que o "propinoduto" gerenciado pelos dirigentes do PT tinha finalidade eleitoral. Muitos dos comentaristas que hoje se lastimam pela eleição de mensaleiros estiveram entre os que mais valentemente compraram a ficção do caixa dois eleitoral e que promoveram a inútil discussão sobre financiamento público exclusivo de campanhas eleitorais.
Apesar de ser absurdo dizer que um modelo de financiamento eleitoral, qualquer que seja, tem alguma espécie de efeito sobre o fato de uns indivíduos receberem propina num esquema de corrupção, foi exatamente isso o que uma quantidade extraordinária de formadores de opinião comprou e vendeu em 2005. Com isso, absolveram moralmente os mensaleiros. Esse filho é deles.
CLAUDIO WEBER ABRAMO, mestre em lógica e filosofia da ciência pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), é diretor-executivo da Transparência Brasil, organização dedicada ao combate à corrupção no país.
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http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz0610200609.htm
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