segunda-feira, janeiro 12, 2009

O impacto do ataque a Gaza na rua árabe

O impacto do conflito em Gaza sobre o mundo árabe

A tentativa israelense de infligir aos palestinos o estaticídio sublinha, entre outras coisas, a reconfiguração do poder, da legitimidade e do ativismo no Estado árabe moderno


RAMI G. KHOURI

As consequências imediatas do ataque israelense a Gaza são sentidas primeiramente, claro, pelos palestinos de Gaza. Mas as ondas de choque políticas serão sentidas em todo o mundo árabe de formas difíceis de prever. A tentativa israelense de infligir a Gaza o estaticídio sublinha uma série de tendências transformacionais da região nos últimos 25 anos. A mais importante diz respeito à reconfiguração do poder, da legitimidade e do ativismo no Estado árabe moderno.
À medida que os governos dos Estados árabes existentes continuarem a ignorar o que ocorre em Gaza -como fazem na prática, a julgar por sua imobilidade política-, vamos continuar a testemunhar o enfraquecimento do impacto, do controle e até mesmo da legitimidade de muitos desses regimes. Também vamos continuar a testemunhar a ascensão de atores não estatais que se tornam tão fortes e dignos de crédito que deveriam ser descritos como Estados paralelos. As manifestações de rua promovidas por árabes enfurecidos já deixaram de ter significado político, pois o medo, a ira e o desejo de ação de homens e mulheres comuns em todo o Oriente Médio vêm sendo mobilizados por uma combinação de movimentos islâmicos e tribais que hoje formam o centro de gravidade da identidade política árabe -nos espaços crescentes não dominados pelo Estado policial árabe moderno.
Hizbollah, Hamas, a Irmandade Muçulmana, o movimento de Muqtada al Sadr no Iraque e outros são alguns dos principais exemplos desse fenômeno. O Hamas, em Gaza, é provavelmente o mais significativo, pois é uma parte grande do conflito fundamental palestino-israelense que se expandiu num conflito árabe-israelense maior. É uma paisagem sagrada que incorpora Jerusalém e que é sagrada a todos os muçulmanos e árabes, inclusive cristãos. E, nos últimos dois anos, é o único ponto na história do conflito em que os palestinos tiveram uma chance breve de estabelecer um mini-Estado soberano -com suas instituições e operações de segurança próprias, em grande medida livre de ataques e controles israelenses diretos ou de empecilhos postos por outros árabes.
As próximas semanas vão revelar o que está acontecendo nas batalhas em Gaza e nas ramificações políticas a seguir. O que já está claro, porém, é que Gaza representa a primeira vez na história que palestinos que controlavam sua própria sociedade decidem tomar posição contra as tentativas de Israel de matar, ocupar, privar de alimentos, prender e destruí-los como sociedade coerente.
O quadro não é bonito, sob qualquer dimensão:
* as lutas internas entre palestinos do Fatah e do Hamas;
* ataques mútuos entre Hamas, outros palestinos e Israel;
* a insolubilidade das negociações israelenses com a Autoridade Nacional Palestina encabeçada por Mahmoud Abbas;
* a estarrecedora imobilidade dos governos árabes; e
* a desatenção cúmplice do mundo à tentativa israelense de estrangular a população de Gaza e matá-la de fome desde que o Hamas venceu as eleições parlamentares, em 2006.
A maior parte disso tudo não é novidade. O único fenômeno realmente novo hoje é que vários milhares de palestinos armados e treinados, sob o comando do Hamas e de alguns grupos de resistência menores, assumiram uma posição defensiva em sua terra natal.
Eles mostraram que estão dispostos a lutar até a morte para se defender contra o poderio de Israel e o apoio dos EUA a Israel. O ataque contínuo que Israel vem lançando contra a população e a terra palestinas há 60 anos e que só vem se intensificando já extrapolou tantos limites que finalmente vem começando a suscitar reações de muitos setores do mundo árabe que se recusam a aceitar sua própria humilhação, colonização, marginalização ou, no pior caso, como na faixa de Gaza hoje, seu próprio extermínio.
A maioria da população árabe e outras pelo mundo se solidariza com o Hamas e os palestinos. Mas é impotente para fazer qualquer coisa senão protestar nas ruas. A maioria dos governos árabes e estrangeiros teme movimentos como o Hamas, que mobilizam massas de cidadãos, tomam as rédeas de seu destino e abertamente resistem e confrontam as estruturas de poder respaldadas pelos EUA que os cercam.
A maneira como esta guerra vai terminar terá um impacto enorme sobre as tendências na região. Se o Hamas emergir em pé, com um cessar-fogo internacionalmente monitorado que suspenda os ataques de ambos os lados e reabra as fronteiras de Gaza, isso será visto como vitória. Também reforçará a popularidade do modelo Hizbollah-Hamas de resistência armada, predicada na disposição e capacidade de combater um inimigo mais forte.
Historicamente, Israel nunca conseguiu aceitar o nacionalismo palestino. Nunca viu os palestinos como pessoas que devem desfrutar da mesma qualidade de vida e dos mesmos direitos nacionais que judeus, sionistas e israelenses. Gaza é o primeiro grupo de palestinos assertivos operando em solo palestino. Esses palestinos suscitaram uma tentativa de estaticídio por parte de Israel e, ao mesmo tempo, um apoio popular amplo em toda a região árabe. Essas duas tendências vão reforçar os movimentos islâmico-nacionalistas e degradar ainda mais algumas estruturas de Estado árabes.

RAMI G. KHOURI é editor-geral do "The Daily Star" e diretor do Instituto Issam Fares de Política Pública e Assuntos Internacionais, na Universidade Americana de Beirute, no Líbano. Este artigo foi distribuído pela Agence Global.

Tradução de CLARA ALLAIN

Texto da Folha de São Paulo, de 11 de janeiro de 2009.

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