segunda-feira, janeiro 12, 2009

O mero registro

O mero registro

TUDO O QUE é essencial na guerra permanente entre Israel e os ex-habitantes do seu território vai-se diluindo, com o desvio para o tema da desproporção entre as forças opostas. Na ONU, na imprensa, no Parlamento Europeu, no que se sabe das confabulações diplomáticas, é mais uma falsa discussão. Ou mais uma retomada, como a própria guerra, de um dos falsos temas utilizados para evitar a discussão do essencial e protelar a situação conveniente a interesses muito altos.
Maior do que a desproporção dos recursos, só a sua obviedade. A mesma e longa obviedade, de décadas iniciadas quando grupos judeus, antes do Estado de Israel, recriaram o esquecido terrorismo para fustigar, com sangue e morte, o colonizador inglês da Palestina e tanger os palestinos em fuga de suas terras. Em bem mais de meio século desde então, a militarização levou o Estado de Israel a ser até potência nuclear. O que isto admite mais, a respeito de desproporção, do que o seu mero registro, ele mesmo já excessivo?
Neste e em qualquer caso de desproporção, o que importa de fato não é sua existência, mas o que é feito com a vantagem da desproporção. São truques da má-fé as questões como as postas pelo sempre duvidoso filófoso francês André Glucksmann (Folha, 7.jan.): "Qual seria a proporção justa? (...) Israel deveria simplesmente esperar com paciência até que o Hamas, graças ao Irã e à Síria, pudesse "equilibrar" o seu poder de fogo?"
Com a quantidade de soldados e de armas de que dispõem, os militares israelenses não precisam destruir uma universidade porque de lá atirem, supondo-se que atirassem mesmo, foguetes imprecisos sobre Israel. Nem destruir quarteirões, soterrando os moradores, porque lá morem tal e qual chefe do Hamas. Ou destruir três escolas mantidas pela ONU, demarcadas por bandeiras da ONU, com localização previamente informada a Israel pela ONU, e causar a morte de 45 crianças entre as 350 ali refugiadas. Os militares de Israel têm todos os meios para agir seletivamente, em torno e sobre cada fonte de foguetes e cada comando do Hamas. Preferem o uso da desproporção para a destruição e a matança indiscriminadas.
O Exército de Israel matou mais soldados israelenses do que o Hamas conseguiu fazê-lo: 3 a 1. Senão, com os feridos graves, já 4 ou mais a 1. E este um não teve descrita a causa de sua morte, apenas referida a baixa na invasão, o que põe em dúvida o feito único do Hamas. Nessa outra desproporção está, porém, a confirmação do que os militares israelenses fazem com a anterior. É que aquelas mortes de soldados ocorreram porque um tanque israelense, desavisado, disparou canhonaços contra um prédio ocupado por sua tropa. Balaços a esmo, portanto, e não voltados para alvos civis que abrigam focos do Hamas. Tanques e canhões para destruir -universidade, escolas, crianças, mulheres, homens não-combatentes e, não importa a desproporção, militantes do Hamas.
Um médico ocidental, ares exaustos e excitados, dizia em um hospital, para a BBC, no segundo dia da invasão de Gaza: "45% dos feridos são mulheres e crianças. 25% dos mortos são crianças". Alguma desproporção a ser explicada? Claro. Os mais primários dizem que "os palestinos usam civis como escudos", mas o presidente de Israel, Shimon Peres, com sua estatura de Prêmio Nobel da Paz tem a explicação autorizada:
"Muitas crianças palestinas estão morrendo. E quase nenhuma criança israelense está morta. Por quê? Porque cuidamos das nossas crianças". E o que fazem esses bons pais e governantes com as crianças dos outros?

Texto de Jânio de Freitas, na Folha de São Paulo, de 8 de janeiro de 2009.

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