Fórmula para o Caos, livro de Moniz Bandeira sobre o golpe de 1973 no Chile
1:
Livro sobre golpe mostra a solidão de Allende
"Fórmula para o Caos", de Moniz Bandeira, narra experiência socialista no Chile dos 70
Às vésperas do golpe há 35 anos, acossado pela direita e com sua base política dividida, presidente havia decidido chamar plebiscito
CLAUDIA ANTUNES
EDITORA DE MUNDO
Ao tomar posse no mês passado, encerrando 61 anos de domínio do Partido Colorado no Paraguai, o ex-bispo Fernando Lugo citou o presidente socialista do Chile derrubado no golpe militar ocorrido há 35 anos. "Nunca nos esqueçamos de Salvador Allende", disse.
A esquerda católica fazia parte da Unidade Popular de Allende, embora minoritária frente ao PS e ao PC marxistas, e a conclamação de Lugo reforça a idéia de que o 11 de setembro chileno permanece como o símbolo mais trágico e controvertido da Guerra Fria na América do Sul -mesmo com o socialismo que Allende se propôs a implantar pela via pacífica fora do horizonte político.
E é como um "herói trágico" que ele emerge de "Fórmula para o Caos", livro que o historiador Luiz Alberto Moniz Bandeira, prolífico estudioso das relações entre os EUA e a América Latina, lança nesta semana pela editora Civilização Brasileira. A obra, cujo título foi tirado de memorando da CIA sobre as operações anti-Allende, será publicada também no Chile.
Ao final de um relato minucioso de 644 páginas, Moniz Bandeira descreve um presidente fadado a decidir sozinho, enquanto era acossado pela direita, solapado pela Democracia Cristã e minado em sua posição legalista pelas divisões em sua base política. A União Soviética, onde fora buscar ajuda econômica, deixou claro que não bancaria uma nova Cuba.
Allende havia tomado a decisão de convocar um plebiscito sobre suas reformas -disposto a renunciar se fosse derrotado- quando o golpe foi desfechado e ele se matou no Palácio de la Moneda sob bombardeio.
"Inviável"
Em 4 de setembro, terceiro aniversário da eleição de Allende, 800 mil chilenos (numa população de 10 milhões em todo o país) tinham saído às ruas de Santiago para apoiar o governo, que enfrentava o segundo locaute prolongado de caminhoneiros e empresários.
Mas, com parte significativa do PS, partido ao qual pertencia, apoiando a proposta do MIR (Movimento de Esquerda Revolucionária) de substituir os Poderes constitucionais pelo "poder popular" organizado nos bairros pobres, no campo e nas fábricas, o homem com quem Allende buscou conselhos, segundo a narrativa de Moniz Bandeira, foi o general Carlos Prats.
Pouco antes, a saída de Prats do Ministério da Defesa e do comando do Exército, sob pressão da oficialidade, acabara com o último empecilho aos golpistas. Exilado na Argentina, ele viria a ser morto em 1974 pela Dina, a polícia política do seu sucessor à frente do Exército, Augusto Pinochet.
Em entrevista à Folha da Alemanha, onde mora, Moniz Bandeira disse que pretendeu escrever um livro "na medida do possível objetivo", diferente de "quase todos os livros sobre Allende e o golpe, que são partidários, ideológicos".
O historiador parte do pressuposto de que a proposta da Unidade Popular de adotar um modelo "vinho e empanadas" de revolução estava destinada ao fracasso. "[Karl] Marx dizia que o socialismo é inviável como via de desenvolvimento, sobretudo num país atrasado como o Chile, em que 70% da produção era de cobre e 70% dos alimentos tinham de ser importados. Era um país vulnerável, ainda mais na esfera de influência dos EUA", diz.
"Minha idéia é sair do lugar comum de que a CIA fez tudo, ou de que o Brasil fez tudo. O projeto era inviável."
Polêmica
Entre os que participaram da experiência, é uma conclusão que poucos verbalizaram. O antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997), que assessorou Allende no Chile depois de ser exilado pelo golpe de 1964 que derrubou João Goulart (do qual era chefe da Casa Civil), atribuiu à radicalização do MIR e do PS o desfecho do processo.
O cientista político Theotonio dos Santos, que também esteve exilado em Santiago, escreveu por ocasião dos 30 anos do golpe que o erro de Allende foi insistir em manter mecanismos de economia de mercado quando se aguçaram os choques com os capitalistas: "A derrota não é uma prova de que a vitória era impossível".
Moniz Bandeira, que é parlamentarista, também analisa o golpe sob o prisma do embate entre Executivo e Legislativo, segundo a sua premissa de que, nas Repúblicas latino-americanas, o Exército foi instado a atuar como "poder moderador". Allende ficou nas mãos de Forças Armadas com fortes ligações com os EUA e majoritariamente anticomunistas.
O processo chileno -desde o maciço financiamento americano, no início dos anos 60, ao democrata-cristão Eduardo Frei, no marco da Aliança para o Progresso- é entremeado no livro por capítulos sobre os golpes militares de 1971 na Bolívia e de 1973 no Uruguai.
Allende não tinha maioria parlamentar. Foi eleito em 1970 com pouco mais de 36% dos votos, os demais divididos entre os candidatos da direita e da Democracia Cristã. No pleito legislativo de 1973, a votação da Unidade Popular aumentou para quase 44%, sem permitir, no entanto, que o governo rompesse o impasse no Congresso.
2:
Historiador usou arquivos do Itamaraty
DA EDITORA DE MUNDO
Para traçar a história do governo Allende e suas ramificações regionais e hemisféricas, Moniz Bandeira teve acesso a documentos inéditos do arquivo do Itamaraty, que mostram os telegramas enviados pelo embaixador brasileiro em Santiago, Antônio Câmara Canto, um simpatizante dos golpistas, ao governo do general Emílio Garrastazu Médici.
Além da torcida pela derrubada de Allende, os documentos indicam que o Brasil se envolveu diretamente já perto do golpe. Primeiro, ajudando conspiradores ligados ao grupo de extrema-direita Pátria e Liberdade, que planejava isolar o sul chileno do resto do país, na hipótese de que houvesse guerra civil.
Depois, o Brasil reconheceu rapidamente o regime militar, lhe deu ajuda financeira e enviou agentes para interrogar os brasileiros presos em seguida ao golpe -eram mais de 1.200 no país, na época, dos quais pelo menos seis foram mortos.
Também houve, segundo o livro, assessoria à oposição chilena de empresários brasileiros, entre eles Glaycon de Paiva, um dos fundadores do IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais). Ele teria recomendado a versão chilena das Marchas da Família com Deus pela Liberdade, em que mulheres de classe média e alta saíam batendo panelas.
O livro também é baseado nos documentos sobre o envolvimento do governo de Richard Nixon (1969-1974) na preparação do golpe e no financiamento da oposição, incluindo tanto os do Relatório Church, da comissão que investigou o caso no Congresso americano, quanto os desclassificados posteriormente pela ONG National Security Archive.
Está lá a famosa frase de Henry Kissinger, secretário de Estado de Nixon, de que os EUA não poderiam "deixar um país se tornar marxista só porque seu povo é irresponsável". O próprio título do livro é tirado de um memorando do agente Henry Heckscher, chefe da estação da CIA em Santiago.
Moniz Bandeira também usou fontes secundárias e relatos do período feitas por seus protagonistas. Entrevistou alguns deles, incluindo Roberto Thieme, genro de Pinochet e dirigente do Pátria e Liberdade. "Ele me contou que oficiais do alto comando da Marinha lhes deram os planos de atentados terroristas praticados pelo grupo, como o grande blecaute que atingiu todo o Chile, em 1973", comenta o historiador. (CA)
Textos da Folha de São Paulo, de 8 de setembro de 2008: 1 e 2.
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