O (Des) encontro da mídia com a periferia
O rapper foi autêntico. Emitiu opiniões controversas e diretas que quase nunca (ou nunca) são defendidas nos grandes meios de comunicação do país.
Defendeu traficantes, camelôs e torcida organizada. Cuba, socialismo, os evangélicos e o candomblé.
Apontou pontos fortes e fracos da política de combate à pobreza. Defendeu as cotas para negros nas universidades - "isto é o mínimo", disse.
Defendeu o presidente Lula e a conduta dele diante dos últimos casos de corrupção. Defendeu o líder sem-terra José Rainha, a ex-prefeita Marta Suplicy e os seus CEUs.
Atacou a Ambev. Atacou a pinga 51. Desdenhou do governador de São Paulo, José Serra. Desdenhou da Nike e da Adidas.
Rechaçou o papel de herói. Expôs fragilidades próprias. Manteve o controle das ações. Foi respeitoso, e impôs respeito.
Por sua vez, a banca de entrevistadores não foi contundente. Parecia não estar num bom dia. Sofrer de algum tipo de paralisia momentânea e coletiva. Estar, de alguma maneira, menos potente. "Ta suave até agora, tô até estranhando", notou o próprio Brown.
Estavam lá jornalistas e estudiosos de gabarito, que já haviam participado do programa e de outros debates com desenvoltura.
São nomes representativos da imprensa de comportamento e cultural, do jornalismo de opinião conservadora e da TV Pública, da cobertura social e policial. Também da psicanálise e das letras - neste último caso, o único entrevistador oriundo da periferia.
A bancada não acusou Brown de ser generalista na sua crítica a policiais. Não o acusou de fazer apologia ao crime. Não o questionou sobre o tumulto da Virada Cultural, em São Paulo.
Não o questionou claramente sobre o que pensa das elites. Nem sobre o que pensa da classe média, da mídia e de uma política de segurança possível.
Esteve tímida e constrangida. Teve medo do líder dos Racionais MC's. E demonstrou pouco conhecimento dos valores da periferia, sem admiti-lo.
A cada declaração desconcertante de Brown se sucedia um silêncio pesado, tensão, desconforto. "O que vocês chamam de traficante, chamo de comerciante, o cara que comercializa cocaína". Ou: "O dono da 51 não tira cadeia. A Ambev não tira cadeia. Se você tomar quatro latas de cerveja, você vira super-homem na Marginal", disse o rapper.
Ou ainda: "os nossos amigos, da nossa família, do nosso parceiro, das caras que estão lado a lado, muitas vezes é o traficante", disparou.
Brown pronunciou idéias e palavras estranhas aos ouvidos de todos cuja maior fonte de informação sobre a periferia é a mídia. Simpáticas ou antipáticas, são impressões tiradas do ângulo da periferia. E este ângulo não tem espaço cativo na nossa grande imprensa.
Acredito que a falta de pegada dos entrevistadores esteja ligada ao divórcio entre boa parte da cobertura jornalística e os bairros periféricos das grandes cidades. É até clichê afirmar que a favela só está nas páginas policiais dos jornais.
Os órgãos de imprensa não cobrem bem as áreas habitadas por populações cujo poder de consumo não atinge a faixa de público procurada por seus anunciantes. Quando o fazem, é com o ângulo de quem é de fora.
Salvo importantes exceções, como o trabalho do repórter André Caramante e de outros observadores que vivem o dia-a-dia das comunidades - eles fizeram falta ao programa.
A grande imprensa (refiro-me ao jornalismo, e não ao entretenimento) fala cada vez menos com a periferia. Já faz um tempo que estes moradores deixaram de levar esta mídia em conta. Isso é fruto de um distanciamento imenso.
Representantes de comunidades e a mídia da periferia provavelmente estariam mais à vontade para questionar Brown. As idéias propagadas pela cultura rap estão longe de ser unanimidade no seu habitat. Perdeu-se a chance de conhecer mais a fundo o que pensa esta liderança.
Um encontro verdadeiro entre a mídia e a periferia será benéfico para a sociedade. Isso acontecerá quando representantes das comunidades forem presença generalizada nas redações. E quando as demandas e expressões periféricas tiverem a cobertura que merecem.
Este processo já está em curso. Por enquanto, a grande mídia está de fora. Cada vez mais isolada, paralisada e com medo.
Ricardo Kauffman no Terra Magazine, também visto nas Leituras e Opiniões do Luis Favre.
Marcadores: grande mídia, Mano Brown, mídia, rap
8 Comments:
Bom comentário. Mas podemos antecipar (como um exercício) que, mesmo que as opiniões do Brown não sejam unanimidade mesmo no interior de seu próprio habitat, se ele fosse efetivamente interpelado pelos seus (e não por representandes da mídia extra-periférica) a audiência regular do programa ficaria lá, boiando, como que de fora da conversa! Aliás, como aqueles entrevistadores, na ocasião mesma em que Mano Brown estava entre eles. Silêncios constrangedores de uma audiência a quem a incompatibilidade entre a própria vida e a vida da periferia se tornaria patente, mas a quem, infeliz e possivelmente, permaneceria oculto o problema de que essa incomensurabilidade cultural AINDA lhe é vizinha, ainda lhe compete, pela boa razão de que ainda supõe comunidade política.
Faz duas semanas que o Mano Brown apareceu no Roda Viva. Foi uma entrevista bizarra que mostrou realmente o desencontro da mídia com a periferia. Mano Brown é a banalização da ignorância, infelizmente. É o resultado da ausência de Estado na periferia. E tem gente que acha isso ótimo.
Cada um defende o que quer... eu tb iria ficar chocada como entrevistadora se o entrevistado defendesse o que ele defendeu! Meu ponto de vista! bjs
A questao nao é defender A ou B, é encarar os fatos como eles são, e isto só se dá com a interpretaçao de TODOSos envolvidos, e a partir dáí construir uma solução. Julgar o MB com nossa visao pequeno-burguesa é ridiculo..
Toda força a livre expressao!!
Belo comentário, Marden.
Maia, não sei se te entendi, além de achar que tu não gostas do Mano Brown.
Chocada, Leticia? Tu não conhecias o Mano Brown?
É Grazziotin. É mais ou menos por aí.
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