quarta-feira, março 14, 2007

Vinícius Torres Freire: O Mundo da Cana-de-Açúcar - Folha de São Paulo, 11/03/2007

VINICIUS TORRES FREIRE

Álcool, crescimento e pobreza

Progresso da indústria e da ciência do álcool convive com o mundo do lavrador que corta 8 toneladas de cana por dia

O LAVRADOR de Ribeirão Preto recebe em média R$ 2,50 por tonelada de cana cortada. Menos que o de Piracicaba, onde a tonelada vale R$ 3. Os canaviais de Ribeirão Preto pertencem à grande propriedade. Suas terras mais planas permitem o uso de máquinas. As empresas, mais capitalizadas, dispõem de dinheiro para comprá-las.
Em Piracicaba, as terras são mais íngremes; as fazendas, menores.
Nos anos 80, o lavrador fazia cinco toneladas de cana por dia. A mecanização da colheita o obrigou a ser mais produtivo. O corta-cana derruba agora oito toneladas por dia. Para abater toda essa cana, precisa dar 8.000 golpes com seu facão.
Uma lei paulista determina que os canavieiros reduzam a área de cana queimada, atividade poluente e cada vez mais perdulária. A palha que não é queimada tem uso econômico. Em breve, poderá virar álcool também.
A cana queimada facilita o corte manual. Cortar a cana "crua" é economicamente inviável e ainda mais desumano. Mas, em 2021, a queimada estará proibida. A lei e a capitalização da indústria da cana reduzem rapidamente a queimada e, assim, o emprego do corta-cana. Quem sobra, deve competir com a máquina. Mas a mecanização é inevitável.
O trabalhador deve cortar a cana rente ao chão, encurvado. Usa roupas mal-ajambradas, quentes, que cobrem o corpo, para que não seja lanhado pelas folhas da planta. Mas se acidenta mesmo assim. Se corta com o facão, tem lesões por esforço repetitivo. O excesso de trabalho causa a "birola": tontura, desmaio, cãibra, convulsão. A fim de agüentar dores e cansaço, toma drogas e soluções de glicose, quando não farinha mesmo. Têm havido mais mortes por exaustão nos canaviais.
Se o corta-cana de produtividade média trabalha no regime "5x1" (cinco dias de trabalho por um de folga), recebe uns R$ 500 por mês.
Cerca de 50% dos trabalhadores do Brasil ganham menos que isso. Algumas estatísticas, ainda imprecisas, dizem que 70% dos trabalhadores da indústria da cana têm emprego formal. No Brasil, os empregados protegidos pela lei e pela seguridade social não passam de 50% do total.
A indústria alcooleira resultou de um plano estatal de criar um setor econômico e uma tecnologia nova.
Perdulário, estatista e sem fiscalização (é da ditadura, de 1975), ainda assim o programa desenvolveu pela primeira vez no Brasil a integração sistemática de pesquisa científica, empresa rural e industrial.
O setor da cana faz hoje uns 3,5% do PIB. Exporta US$ 8 bilhões. Gera toda a energia elétrica que consome e ainda vende excedentes. A indústria de São Paulo contrata cientistas e engenheiros para desenvolver máquinas e equipamentos mais eficientes para as usinas de álcool. Mas agora também equipa a indústria de celulose, papel e mineração, além de usinas elétricas. A pesquisa privada e pública na área agrícola (cana, laranja, eucalipto etc.) desenvolve a bioquímica e a genética no país.
O progresso do setor poderia ser um modelo nacional para a pesquisa e a indústria de software, materiais, remédios, teles e internet ou mesmo reciclagem de lixo. Mas há vasta inércia e silêncio sobre tais assuntos. Assim como nada se ouve sobre a miséria do corta-cana no mundo maravilhoso do etanol.



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