Representantes - Folha de São Paulo, 22/08/2006
RUBEM ALVES
Privilégios
Representantes têm de ser iguais ao povo. Não têm privilégios. Não se valem de foros especiais para se safar
O BRASIL É bom porque aqui todo mundo é religioso. Uma pesquisa revelou que 99% dos brasileiros acreditam em Deus. Isso é garantia da integridade ética do nosso povo. Quem acredita em Deus é mais confiável do que quem não acredita. Quem acredita em Deus anda na linha por medo do castigo. Dando-se crédito às Sagradas Escrituras os nossos 99% só são batidos pela população do inferno pois, segundo o apóstolo Tiago, 100% dos demônios não só acreditam em Deus como estremecem ao ouvir o seu nome. Ah! Como minha alma fica tranqüila ao ver os crucifixos nas paredes dos gabinetes dos deputados e senadores e as Bíblias nas mãos dos pastores evangélicos...
Movido pelo mais sincero sentimento religioso e certo de que 99% dos congressistas não só acreditam em Deus como também estremecem ao ouvir o seu nome, achei adequado fazer algumas considerações teológicas apropriadas ao momento que estamos vivendo, qual seja, o de escolher os nossos representantes.
Vereadores, deputados, senadores e o presidente são nossos "representantes". Um "representante" é uma pessoa que toma o lugar de uma outra. Ela age como se fosse a outra. Pois essa palavra "representante" tem uma gravidade teológica: todo o drama da salvação que nos livra do fogo do inferno gira em torno dela. Para que nossas dívidas pecaminosas fossem pagas a N.S., Jesus Cristo teve de se "esvaziar" de todos os seus atributos divinos a fim de tomar o nosso lugar e nos "representar" perante Deus Pai. Se tal não tivesse acontecido todos estaríamos condenados ao sofrimento eterno.
A essência da "representatividade" é a "igualdade" entre o "representado" e o seu "representante". Uma raposa não pode representar as galinhas. Um heterossexual não pode representar os "gays". O dono da fábrica não pode representar os operários. O representante, assim, não pode ser "mais" que o representado. Esse "mais" é um privilégio, "lei privada" que vale apenas para um grupinho.
Na democracia não há privilégios. Todos são iguais perante a lei. Quando um Brasilino qualquer rouba um pacote de manteiga ou um boné ele vai para a cadeia. Vai pra cadeia porque a lei não sabe que ele é um Brasilino qualquer. E não sabe por ser cega. Se é cega para o Brasilino, é cega também para vereadores, deputados e senadores. Essa é a razão porque esses senhores, quando pegos com as mãos cheias de dinheiro público, vão também para a cadeia. Como é bem sabido as cadeias estão cheias deles... Representantes têm de ser iguais ao povo. Não têm privilégios. Não têm aposentadoria em condições especiais, não se valem de foros especiais para se safar. E nem votam os seus próprios salários porque os Brasilinos não votam os seus salários.
Estou certo de que, a fim de derrotar o 1% que não acredita em Deus e que, por isso mesmo se candidata para ter privilégios, os restantes 99% de legítimos representantes do povo, no início do seu mandato, haverão de votar uma lei que declare extintos todos e quaisquer privilégios que os tornam diferentes dos Brasilinos.
Por isso o momento de eleição é um momento de alegria teológica e democrática. Nossos candidatos não só acreditam em Deus como estremecem ao ouvir o seu nome...
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2208200605.htm
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