terça-feira, junho 22, 2010

Sobre Luiz Gama - Filho da tortura

Ode ao filho da tortura

CÁSSIO SCHUBSKY

Com sua pena afiada e cirúrgica, Darcy Ribeiro foi ao ponto, ao descrever a escravidão no Brasil como uma "máquina de moer carne humana". Séculos de sevícias não se esquecem facilmente. Índios dizimados e enterrados em todos os recantos do país impedem que se transforme a história do Brasil num conto de fadas de concórdia e fantasia. Sertanejos de Canudos. Trabalhadores de Eldorado do Carajás. Presos do Carandiru.
Ironia do destino nos armou o centenário da Revolta da Chibata. Em 1910, os marinheiros, em plena República, estrugiram contra a sanha dos açoites impingidos como castigo aos trabalhadores do mar, sob o comando da Marinha.
Agora, em 2010, cem anos depois, ministros do Supremo Tribunal Federal transformaram a fundamentação histórica de seus julgados sobre anistia a torturadores da ditadura em história da carochinha, ao fabularem um brasileiro pacífico e cordato, amigo do acordo, a justificar a impunidade. Sejam feitas as ressalvas aos preclaros ministros Carlos Ayres Britto e Enrique Ricardo Lewandowski.
A história tem mesmo o condão de nos pregar peças... Pois em 21 de junho celebram-se os 180 anos de nascimento de Luiz Gonzaga Pinto da Gama (1830-1882). "A quem a história não esqueceu", mas que vinha recebendo diminuto reconhecimento. Ressaltem-se esforços recentes para trazer à tona os feitos obumbrados de Gama.
Caso do embaixador Rubens Ricupero e do professor Fábio Konder Comparato, por meio de artigos e discursos; ou da pesquisadora Lígia Fonseca Ferreira, com várias obras publicadas; e do historiador e advogado trabalhista Nelson Câmara, que lança agora um livro ("O Advogado dos Escravos"), desvelando os dotes de causídico de Gama, que conseguiu, rábula, a libertação de centenas de escravos, com bem articulados habeas corpus.
Filho da negra liberta Luiza Mahin e de um fidalgo português de identidade desconhecida, o baiano Luiz Gama foi vendido como escravo pelo pai, com dez anos de idade.
Ainda jovem, conquistou a liberdade. Maçom, ativista político, abraçou, com fervor, as causas da abolição e da República, atuando na loja América, com pares como Castro Alves, Rui Barbosa e Joaquim Nabuco. Impedido de estudar direito nas Arcadas, fez-se advogado por si mesmo.
Poeta, jornalista, educador e tribuno, articulou seus afazeres em prol da libertação dos escravos. Seu estilo ferino rendeu-lhe reprimendas várias. Funcionário da polícia paulista, foi exonerado.
Fustigou a magistratura, com picardia, por não respeitarem muitos dos juízes as leis em vigor, que proibiam o tráfico e a própria escravidão, como demonstrou Luiz Gama na Justiça. Poeta engajado, advogado atilado, jornalista cáustico e percuciente, seus escritos e seus exemplos são legados de um tempo que não acabou: a tortura no Brasil continua impune, corroendo delegacias e presídios. Legiões de desesperados mínguam prostrados na marginalidade no campo e na cidade.
Em afronta às leis em vigor, a começar da Lei Maior -nossa pisoteada Constituição cidadã.

CÁSSIO SCHUBSKY, 44, editor e historiador, é organizador do livro "Clóvis Beviláqua, um Senhor Brasileiro" (Editora Lettera.doc).

Texto publicado na Folha de São Paulo, de 16 de junho de 2010.


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Temporada de caça aos blogues?

Temporada de caça aos blogues?


Notícias publicadas na semana passada na Folha de São Paulo (restrito a assinantes) e no portal da Rede Globo, o G1, dão conta que a Justiça Eleitoral quer saber os responsáveis pelos blogues Os Amigos do Presidente Lula, e Eu Quero Serra. As notícias informam ainda que o ministério público eleitoral quer impor multas aos tais blogues por “propaganda eleitoral antecipada”.


Situação complicada. Uma breve visita ao blog Os Amigos do Presidente Lula revela que ele está no ar desde janeiro de 2006. É um bocado de tempo. Por outro lado, aparentemente o dono do blogue Eu Quero Serra, se antecipou ao Ministério Público Eleitoral e retirou seu conteúdo do ar. Os “posts” deixados eram de questionamento à censura que o procuradores eleitorais estavam patrocinando contra a liberdade de expressão que um simples cidadão estava tentando exercer. O proprietário do blogue afirma que ele publica por simpatia ao candidato José Serra, e não tem vínculos com partidários com o PSDB, partido de José Serra.


No caso do blogue Os Amigos do Presidente Lula, ele é assinado por um casal que também afirma a sua não-filiação ao ao PT. Os “posts” mais recentes também questionavam o comportamento censor do Ministério Público Eleitoral. No caso deste blogue, o conteúdo ainda não havia sido tirado do ar. E é possível avaliá-lo. De maneira geral, os “posts” se assumem como “de esquerda”, “petista”, e “pró-presidente Lula”, não necessariamente nesta ordem. Também questionam críticas ao governo feitas pela chamada grande imprensa.


Aparentemente o Ministério Público Eleitoral quer manter a equanimidade e a lisura da campanha para as eleições gerais no segundo semestre.


Contudo ao querer tirar conteúdos do ar e impor multas aos seus responsáveis, o Ministério Público Eleitoral mostra desconhecimento de como funciona a blogosfera, e demonstra querer impedir a manifestação do pensamento de qualquer cidadão fora dos limites do quadro partidário existente. Ninguém poderá escrever que prefere a candidata Dilma, ou o candidato Serra, ou a candidata Marina, sob pena de multa e cassação do direito de expor sua opinião.


Com a intenção de manter a lisura do pleito, o Ministério Público Eleitoral corre o risco de apenas ser um instrumento de censura e autoritarismo.



21/06/2010.


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sexta-feira, junho 18, 2010

Opositor é liberado em Cuba em estado de saúde grave

Opositor é liberado em Cuba em estado de saúde grave

O governo cubano anunciou que do opositor Ariel Sigler, que sofre de paraplegia e que está em estado de saúde grave, foi libertado neste sábado (12/6). Sigler foi condenado em 2003, junto a outras 74 pessoas.

A libertação, bem como a transferência de outros seis presos, foi anunciada na noite de sexta-feira pelo arcebispo de Havana.

Todos eles, acusados de colaborar com os Estados Unidos para desestabilizar a ordem interna de Cuba e colocar em risco o estado socialista e a independência do país, foram condenados pela a Lei da Proteção da Independência Nacional e da Economia de Cuba.

Entre os presos estão Héctor Fernando Maceda, Juan Adolfo Fernández Sainz, Omar Moisés Ruiz Hernández, Efren Fernández Fernández, Jesus Mustafa Felipe, Juan Carlos Herrera Acosta, que foram enviados para presídios mais perto das respectivas residências.

A liberação de Ariel Sigler, que segundo a agência de notícias espanhola Efe, dirigia o MIOA (Movimento Independente Opção Alternativa) na província de Matanzas, é o segundo passo do governo Raul Castro relação aos presos políticos após o processo de diálogo iniciado em maio passado com a hierarquia da igreja católica.

Notícia vista no Opera Mundi.

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Como surgiu o povo judeu?

Como surgiu o povo judeu?

Após 60 anos recém-completos, a historiografia de Israel amadureceu muito pouco e, aparentemente, não evoluirá em curto prazo. Porém, os fatos revelados por novas pesquisas sobre o passado judaico e sionista colocam para todo historiador honesto questões fundamentais, ainda que surpreendentes numa primeira abordagem

Qualquer israelense sabe que o povo judeu existe desde a entrega da Torá1 no monte Sinai e se considera seu descendente direto e exclusivo. Todos estão convencidos de que os judeus saíram do Egito e se fixaram na Terra Prometida, onde edificaram o glorioso reino de Davi e Salomão, posteriormente dividido entre Judéia e Israel. E ninguém ignora o fato de que esse povo conheceu o exílio em duas ocasiões: depois da destruição do Primeiro Templo, no século VI a.C., e após o fim do Segundo Templo, em 70 d.C.

Foram quase 2 mil anos de errância desde então. A tribulação levou-os ao Iêmen, ao Marrocos, à Espanha, à Alemanha, à Polônia e até aos confins da Rússia. Felizmente, eles sempre conseguiram preservar os laços de sangue entre as comunidades, tão distantes umas das outras, e mantiveram sua unicidade.

As condições para o retorno à antiga pátria amadureceram apenas no final do século XIX. O genocídio nazista, porém, impediu que milhões de judeus repovoassem naturalmente Eretz Israel, a terra de Israel, um sonho de quase 20 séculos.

Virgem, a Palestina esperou que seu povo original regressasse para florescer novamente. A região pertencia aos judeus, e não àquela minoria desprovida de história que chegou lá por acaso. Por isso, as guerras realizadas a partir de 1948 pelo povo errante para recuperar a posse de sua terra foram justas. A oposição da população local é que era criminosa.

De onde vem essa interpretação da história judaica, amplamente difundida e resumida acima?

Trata-se de uma obra do século XIX, feita por talentosos reconstrutores do passado cuja imaginação fértil inventou, sobre a base de pedaços da memória religiosa judaico-cristã, um encadeamento genealógico contínuo para o povo judeu. Claro, a abundante historiografia do judaísmo comporta abordagens plurais, mas as concepções essenciais elaboradas nesse período nunca foram questionadas.

Paralisia unilateral

Quando apareciam descobertas suscetíveis de contradizer a imagem do passado linear, elas praticamente não tinham eco. Como um maxilar solidamente fechado, o imperativo nacional bloqueava qualquer espécie de contradição ou desvio em relação ao relato dominante. E as instâncias específicas de produção do conhecimento sobre o passado judeu contribuíram muito para essa curiosa paralisia unilateral: em Israel, os departamentos exclusivamente dedicados ao estudo da “história do povo judeu” são bastante distintos daqueles da chamada “história geral”. Nem o debate de caráter jurídico sobre “quem é judeu” preocupou esses historiadores: para eles, é judeu todo descendente do povo forçado ao exílio há 2 mil anos.

Esses pesquisadores “autorizados” tampouco participaram da controvérsia trazida pela revisão histórica do fim dos anos 1980. A maioria dos atores desse debate público veio de outras disciplinas ou de horizontes extra-universitários, inclusive de fora de Israel: foram sociólogos, orientalistas, lingüistas, geógrafos, especialistas em ciência política, pesquisadores em literatura e arqueólogos que formularam novas reflexões sobre o passado judaico e sionista. Dos “departamentos de história judaica” só surgiram rumores temerosos e conservadores, revestidos por uma retórica apologética baseada em idéias preconcebidas.

Ou seja, após 60 anos recém-completos, a historiografia de Israel amadureceu muito pouco e, aparentemente, não evoluirá em curto prazo. Porém, os fatos revelados pelas novas pesquisas colocam para todo historiador honesto questões fundamentais, ainda que surpreendentes numa primeira abordagem.

Considerar a Bíblia um livro de história é uma delas. Os primeiros historiadores judeus modernos, como Isaak Markus Jost e Léopold Zunz, não encaravam o texto bíblico dessa forma no começo do século XIX: a seus olhos, o Antigo Testamento se apresentava como um livro de teologia constitutivo das comunidades religiosas judaicas depois da destruição do Primeiro Templo. Foi preciso esperar até 1850 para encontrar historiadores como Heinrich Graetz, que teve uma visão “nacional” da Bíblia. A partir daí, a retirada de Abraão para Canaã, a saída do Egito e até o reinado unificado de Davi e Salomão foram transformados em relatos de um passado autenticamente nacional. Desde então, os historiadores sionistas não deixaram de reiterar essas “verdades bíblicas”, que se tornaram o alimento cotidiano da educação israelense.

Mas eis que, ao longo dos anos 1980, a terra treme, abalando os mitos fundadores. Novas descobertas arqueológicas contradizem a possibilidade de um grande êxodo no século XIII antes da nossa era. Da mesma forma, Moisés não poderia ter feito os hebreus saírem do Egito nem tê-los conduzido à “terra prometida” pelo simples fato de que, naquela época, a região estava nas mãos dos próprios egípcios! Aliás, não existe nenhum traço de revolta de escravos no reinado dos faraós nem de uma conquista rápida de Canaã por estrangeiros.

O exílio de poucos

Tampouco há sinal ou lembrança do suntuoso reinado de Davi e Salomão. As descobertas da década passada mostram a existência de dois pequenos reinos: Israel, o mais potente, e a Judéia, cujos habitantes não sofreram exílio no século VI a.C. Apenas as elites políticas e intelectuais tiveram de se instalar na Babilônia, e foi desse encontro decisivo com os cultos persas que nasceu o monoteísmo judaico.

E o exílio do ano 70 d.C. teria efetivamente acontecido? Paradoxalmente, esse “evento fundador” da história dos judeus, de onde a “diáspora” tira sua origem, não rendeu sequer um trabalho de pesquisa. E por uma razão bem prosaica: os romanos nunca exilaram povo nenhum em toda a porção oriental do Mediterrâneo. Com exceção dos prisioneiros reduzidos à escravidão, os habitantes da Judéia continuaram a viver em suas terras mesmo após a destruição do Segundo Templo.

Uma parte deles se converteu ao cristianismo no século IV, enquanto a maioria aderiu ao Islã durante a conquista árabe do século VII. E os pensadores sionistas não ignoravam isso: tanto Yitzhak ben Zvi, futuro presidente de Israel, quanto David ben Gurion, fundador do país, escreveram sobre isso até 1929, ano da grande revolta palestina. Ambos mencionam, em várias ocasiões, o fato de que os camponeses da Palestina eram os descendentes dos habitantes da antiga Judéia2.

Mas, na falta de um exílio a partir da Palestina romanizada, de onde vieram os judeus que povoaram o perímetro do Mediterrâneo desde a Antigüidade? Por trás da cortina da historiografia nacional se esconde uma surpreendente realidade histórica: do levante dos macabeus, no século II a.C., à revolta de Bar Kokhba, no século II d.C., o judaísmo foi a primeira religião prosélita. Nesse período, a dinastia dos hasmoneus converteu à força os idumeus do sul da Judéia e os itureus da Galiléia, anexando-os ao “povo de Israel”. Partindo desse reino judeu-helenista, o judaísmo se espalhou por todo o Oriente Médio e pelo perímetro mediterrâneo. Assim, no primeiro século de nossa era surgiu o reinado judeu de Adiabena, no território do atual Curdistão, e a ele seguiram-se alguns outros com as mesmas características.

Os escritos de Flávio Josefo são apenas um dos testemunhos do ardor prosélito dos judeus: de Horácio a Sêneca, de Juvenal a Tácito, vários escritores latinos expressaram seu temor sobre a prática da conversão, autorizada pela Mixná e pelo Talmude3.

A expansão para o leste europeu

No começo do século IV, o êxito da religião de Jesus não colocou fim à expansão do judaísmo, mas empurrou seu proselitismo para as margens do mundo cultural cristão. Cem anos depois, surgiu o vigoroso reino judeu de Himiar, onde atualmente está o Iêmen. Seus descendentes mantiveram a fé judaica após a expansão do Islã e preservam-na até os dias de hoje. Da mesma forma, os cronistas árabes nos contam sobre a existência de tribos berberes judaizadas: contra a pressão árabe sobre a África do Norte no século VII, surgiu a figura lendária da rainha judia Dihya-el-Kahina. Em seguida, esses berberes judaizados participaram da conquista da península Ibérica e estabeleceram ali os fundamentos da simbiose particular entre judeus e muçulmanos, característica da cultura hispano-arábe.

A conversão em massa mais significativa ocorreu, no entanto, entre o mar Negro e o mar Cáspio, no imenso reino Cazar do século VIII. A expansão do judaísmo do Cáucaso até as terras que hoje pertencem à Ucrânia engendrou várias comunidades que seriam expulsas para o Leste Europeu pelas invasões mongóis do século XIII. Lá, os judeus vindos das regiões eslavas do sul e dos atuais territórios alemães estabeleceram as bases da grande cultura ídiche4.

Esses relatos sobre as origens plurais dos judeus figuram, de forma mais ou menos hesitante, na historiografia sionista até o início dos anos 1960. Depois disso, foram progressivamente marginalizados e, por fim, desapareceram totalmente da memória pública israelense. Afinal, os conquistadores de Jerusalém em 1967 deveriam ser os descendentes diretos de seu reinado mítico, e não de guerreiros berberes ou cavaleiros cazares. Com isso, os judeus assumiram a figura de éthnos específico que, depois de 2 mil anos de exílio e errância, voltava para a sua capital.

E os defensores desse relato linear e indivisível não mobilizam apenas o ensino de história: eles convocam igualmente a biologia. Desde os anos 1970, uma sucessão de pesquisas “científicas” israelenses se esforça para demonstrar, por todos os meios, a proximidade genética dos judeus do mundo inteiro. A “pesquisa sobre as origens das populações” representa hoje um campo legítimo e popular da biologia molecular, e o cromossomo Y masculino ganhou um lugar de honra ao lado de uma Clio judia na busca desenfreada pela unicidade do “povo eleito”.

Essa concepção histórica constitui a base da política identitária do Estado de Israel e é exatamente seu ponto fraco. Ela se presta efetivamente a uma definição essencialista e etnocentrista do judaísmo, alimentando uma segregação que mantém a distância entre judeus e não-judeus.

Israel, 60 anos depois de sua fundação, não aceita conceber-se como uma república que existe para seus cidadãos. Quase um quarto deles não é considerado judeu e, de acordo com o espírito de suas leis, esse Estado não lhes pertence. Ao mesmo tempo, Israel se apresenta como o Estado dos judeus do mundo todo, mesmo que não eles não sejam mais refugiados perseguidos, e sim cidadãos com plenos direitos, vivendo como iguais nos países onde residem. Em outras palavras, um etnocentrismo sem fronteiras serve de justificativa para uma severa discriminação ao invocar o mito da nação eterna, reconstituída para se reunir na “terra dos antepassados”.

Escrever uma nova história judaica, para além do prisma sionista, não é tarefa fácil. A luz que se refrata ao passar por esse prisma se transforma, insistentemente, em cores etnocêntricas. Mas, se os judeus sempre formaram comunidades religiosas em diversos lugares e elas foram, com freqüência, constituídas pela conversão, obviamente não existe um éthnos portador de uma mesma origem, de um povo errante que teria se deslocado ao longo de 20 séculos.
Sabemos que o desenvolvimento de toda historiografia e, de maneira geral, da modernidade passa pela invenção do conceito de nação, que ocupou milhões de seres humanos nos séculos XIX e XX. Recentemente, porém, esses sonhos começaram a ruir. Cada vez mais pesquisadores analisam, dissecam e desconstroem os grandes relatos nacionais e, principalmente, os mitos da origem comum, caros aos cronistas do passado. Certamente os pesadelos identitários de ontem darão espaço, amanhã, a outros sonhos de identidade. Assim como toda personalidade é feita de identidades fluidas e variadas, a história também é uma identidade em movimento


1 Texto fundador do judaísmo, a Torá é composta pelos cinco primeiros livros da Bíblia, ou Pentateuco: Gênese, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio.
2 Cf. David ben Gurion e Yitzhak ben Zvi, Eretz Israel no passado e no presente (1918, em ídiche), Jerusalém, Yitzhak ben Zvi, 1980 (em hebraico), e Yitzhak ben Zvi, Nossa população no país (em hebraico), Varsóvia, O Comitê Executivo da União da Juventude e o Fundo Nacional Judeu, 1929.
3 A Mixná, considerada como a primeira obra de literatura rabínica, foi concluída no século II d.C. O Talmude sintetiza o conjunto dos debates rabínicos referindo-se à lei, aos costumes e à história dos judeus. Há dois Talmudes: o da Palestina, escrito entre os séculos III e V, e o da Babilônia, concluído no fim do século V.
4 Falado pelos judeus da Europa oriental, o ídiche é uma língua eslavo-alemã com palavras vindas do hebraico.

*Shlomo Sand é historiador, professor da Universidade de Tel-Aviv e autor de Comment le peuple juif fut inventé (Como foi inventado o povo judeu), Paris, Fayard, 2008.

Texto publicado originalmente pelo Le Monde Diplomatique Brasil.

Mas aqui no Ainda a Mosca Azul, este texto foi visto no Opera Mundi.

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quarta-feira, junho 16, 2010

Aparelhamento

Aparelhamento


No primeiro discurso como candidato oficial, Serra repetiu um mantra tucano dos últimos quatro anos: o PT estaria "aparelhando" não só o governo mas o Estado. Junto com a acusação veio a consequência: produziria com isso os "neocorruptos".
A acusação é a de que o PT colocou o Estado brasileiro a serviço do partido. E, ao unir Estado e burocracia partidária, o PT estaria "justificando deslizes morais", afirmou Serra. Conclusão: a "neocorrupção" ameaçaria a própria democracia.
Um debate para valer deveria poder qualificar os termos. A democracia brasileira está em risco apenas em convescotes ideológicos. Aliás, onde estão mesmo aqueles que afirmavam com segurança absoluta que Lula iria buscar o terceiro mandato? A chegada ao governo de um partido que ficou na oposição durante 22 anos exigiria necessariamente a composição de uma equipe de governo nova em grande medida. Foi algo que aconteceu também com o PSDB em 1995.
A diferença é que os tucanos, ao contrário do PT, herdaram quadros de administrações estaduais, já estavam no governo Itamar Franco e fizeram uma aliança com o então PFL, um velho habitué do aparelho de Estado. Confundir esse processo com aparelhamento pura e simplesmente não ajuda a entender o que aconteceu no Brasil nos últimos 16 anos de estabilidade em estabilização.
Veja-se o caso das chamadas agências reguladoras, citados por Serra e por outros integrantes da oposição. O fato é que o PT nunca se convenceu de que a fiscalização de concessões feitas pelo Estado deveria ser feita por intermédio de agências.
Não se trata de aparelhamento, mas de discordância em relação ao modelo implantado pelos tucanos. O governo Lula não aboliu o modelo, mas lhe deu uma outra função: passou a usar as agências para moderar o poder de alguns ministros, à maneira de um contrapeso.
Se o problema de aparelhamento fosse real, a proposta deveria ser a de limitar o número de cargos de confiança e comissionados a um número próximo do ínfimo, por exemplo. Isso não acontece, porque, até o momento, nem PT nem PSDB acham que podem realmente imprimir sua marca nas políticas de governo sem suas equipes próprias.
Se o problema do aparelhamento fosse levado a sério, ele estaria posto onde realmente acontece: nos fundos de pensão de estatais, por exemplo. Corrupção é um problema sério demais para ficar misturado sem mais com política.
Avanços democráticos vêm com a discussão de problemas reais. Pedem que fantasias de cubanização e de aparelhamento sejam deixadas para encontros sociais de fina estampa.


Texto de Marcos Nobre, na Folha de São Paulo, de 15 de junho de 2010.


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terça-feira, junho 15, 2010

Marcha da Maconha e Estado de Exceção

Marcha da Maconha e Estado de exceção


JÚLIO DELMANTO

Sob a acusação de apologia ao crime, a Marcha da Maconha foi proibida pelo terceiro ano consecutivo na cidade de São Paulo.
Após negociação com a polícia, os manifestantes puderam marchar, mas, em nome da liberdade de expressão, sem pronunciar palavras ou mostrar cartazes relativos à legalização da maconha. O evento tem mais importância do que parece, pois nos explica muito sobre nossas Justiça e sociedade.
A Marcha da Maconha se organiza em mais de 300 cidades no mundo, sendo que, no Brasil, estava programada para acontecer em pelo menos 12. Somente São Paulo e Fortaleza a proibiram, sob a frágil acusação supracitada.
No Código Penal, apologia ao crime se caracteriza por defesa de fato criminoso ou de criminoso condenado. Não é esse o caso da manifestação em questão, que defende mudanças na lei para que plantio, comércio e consumo de maconha deixem de ser crime.
Nos últimos 40 anos, somente os EUA gastaram cerca de US$ 1 trilhão na chamada "guerra às drogas". Os resultados dessa estratégia global são pífios no combate ao uso e abuso dessas substâncias.
A proibição traz uma série de efeitos danosos, desde a intervenção estatal sobre condutas privadas até a violência do crime e do próprio Estado, passando por corrupção e encarceramento em massa.
Mas o mandado de segurança impetrado no final do expediente de uma sexta-feira por promotores de São Paulo e prontamente acolhido pelo desembargador Sérgio Ribas, sem tempo para defesa, aponta que a marcha é "um atentado contra a sociedade ordeira", uma vez que incita prática criminosa por meio da "balbúrdia social".
Em nome da ordem, contraria-se o artigo 5º da Constituição, que salvaguarda a livre expressão e a livre manifestação. Em nome da ordem, contraria-se a lei.
Um bom conceito para refletir sobre a atual conjuntura é o de "Estado de exceção". Tradicionalmente invocada como suspensão de direitos num período crítico, a exceção hoje é a regra, caracterizada por uma lei maleável, aplicada seletivamente, e que faz cidadãos abrirem mão de parte de seus direitos em nome de uma democracia maior que nunca chega.
Nas palavras de Giorgio Agamben, é a lei fora dela mesma. Num ambiente em que "perigosos" inimigos são forjados e superestimados de forma a nublar os verdadeiros problemas sociais, torna-se legítima uma política de guerra que se pauta pelo extermínio desses inimigos, hipotecando-se, nesse processo, preceitos básicos do convívio democrático, como o direito de defesa, e leis que se apliquem a todos.
O historiador Carlo Ginzburg cita a existência de um grupo europeu de intelectuais no século 17 chamado "Libertinos Eruditos", que caracterizava a religião como uma mentira útil, sem a qual se desestruturariam as relações sociais.
A proibição das drogas é uma mentira útil a uma certa ordem, que se crê não só imutável como inquestionável. Se queremos uma democracia de fato, não só o caráter mentiroso do proibicionismo deve ser questionado como também a que ele tem sido útil.


JÚLIO DELMANTO, 24, é jornalista, mestrando em História Social pela USP. Participa dos coletivos antiproibicionistas Desentorpecendo a Razão (DAR) e Marcha da Maconha.

Este texto foi publicado na Folha de São Paulo, de 9 de junho de 2010.



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sexta-feira, junho 11, 2010

Retórica e subdesenvolvimento

Retórica e subdesenvolvimento

ACONTECEM COISAS por aí. Na vida de qualquer um, o imprevisto faz parte do previsto, mesmo assim há espaço para algumas surpresas.
No meu tempo de repórter, esse insistente escriba teve certa vez um dia atribulado. Depois de comparecer à inauguração de escola pública, almoçar com um embaixador, entrevistar um policial e escrever um texto sobre o Afeganistão, foi obrigado a assistir a uma sessão no Instituto dos Advogados, quando seria entregue o prêmio de Direitos Humanos a um causídico e jornalista.
Já estava na idade e no tempo de não mais ficar surpreendido com nada, mas esta dose foi para nenhum leão botar defeito. Começa que os nobres advogados, cobras dos cobras nas lides e letras jurídicas, não conseguiram chegar a um acordo a respeito do nome do professor Albert Sabin, presente à cerimônia na qualidade de parente do homenageado.
Luminares do direito, de jurisprudência firmada e formada ao longo de inatacáveis vidas públicas, chamaram o descobridor da vacina Sabin de tudo, menos de Albert Sabin.
Ouvi, pela ordem, os nomes: Alberto Sabino, Roberto Sábio, Albert Saban, Albert Sá e, para coroar, num esforço de imaginação criadora, um advogado de foro carioca se referiu ao grande sábio ali presente como Albert Louis Pasteur!
Depois dessa, eu deveria ficar tranquilo para os restos de meus dias na face da Terra. Mas -como sempre- estava mal informado. Ouvi diversos oradores, inclusive alguns professores de direito da Venezuela, do Peru, da Colômbia e da Argentina, que a América Latina nada tinha a aprender a respeito dos Direitos Humanos.
Citaram datas, congressos, simpósios, reuniões, atas e pareceres provando que bem antes da Revolução Francesa, da Carta Magna, séculos antes da Declaração Universal dos Direitos do Homem, antes do liberalismo americano, enfim, antes da própria noção de que cada ser humano tem direito a nascer, viver e morrer em paz, já os juristas latino-americanos haviam lavado a égua.
Para que não pairassem dúvidas, foram mencionadas as atas, pareceres e congressos nos quais os juristas da América Latina estabeleciam a prioridade básica do homem: ter direito a ser homem.
Ouvi os discursos, prestei esforçada atenção a cada orador e, de repente, eu me senti numa casa de loucos. Impossível que eméritos magistrados, homens que escreveram 50, 80, 120 tomos de saber jurídico, ignorassem a realidade a que me habituei, a que todos nós estamos habituados.
Sou homem de poucas palavras e muitos silêncios. Fiquei tranquilo no meu canto, mas vez por outra tive vontade de dar um grito. Afinal, com raríssimas exceções, os países latino-americanos são exatamente os que mais constantemente, os que mais violentamente, agridem os direitos humanos. Isso está na cara, tão na cara que isso não precisa ser provado.
No entanto, os nobres cultores da ciência jurídica dão-se por bem pagos e gratificados: eles fizeram, à sua maneira, a obrigação que lhes competia: as atas existem mesmo e provam que, de acordo com resoluções, parágrafos e alíneas, nenhum cidadão latino-americano seria privado de seu direito de homem.
Recordei uma conferência da OEA a que assisti, em Punta del Este, na qual foi proposta a expulsão de Cuba. Ouvi o chanceler do Haiti pronunciar um discurso de muitas horas.
Foi o parecer decisivo para que os membros da OEA, com exceção do Brasil e da Argentina, votassem pela exclusão de Cuba da organização, sob o pretexto de que desrespeitava criminosamente os direitos humanos, adotando os fuzilamentos e as torturas aos que combatiam o regime de Fidel Castro.
Num francês impecável, o representante de Papa Doc na reunião tornou desnecessário o discurso de Foster Dulles, que havia solicitado aquela assembleia para punir Cuba, que foi defendida tibiamente por Che Guevara
.
O Haiti ganhou no peito e no verbo, Cuba foi expulsa da comunidade e Papa Doc, um dos maiores tiranos do século 20, soltou foguetes de alegria, louvando o sucesso de seu chanceler. Nesse dia memorável, descobri que o mal da América Latina não é o subdesenvolvimento. É a retórica.

Texto de Carlos Heitor Cony, na Folha de São Paulo, de 28 de maio de 2010. Destaques do blogueiro.


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terça-feira, junho 01, 2010

Direitos fora de moda

Direitos fora de moda

SÃO PAULO - Não mereceu muita atenção da imprensa brasileira o relatório da Anistia Internacional, divulgado anteontem em Londres. Não terá sido por falta de assunto.
Lula adora fazer graça com o sumiço do FMI do noticiário, já que os credores, agora, somos nós. Mas isso não se aplica à pauta da Anistia. Em relação aos direitos humanos, o país ainda é um devedor contumaz.
Vítimas de tortura e de execuções por policiais, superlotação de presídios, populações faveladas à mercê do tráfico ou de milícias, assassinatos e trabalho escravo no campo -a lista de ocorrências "degradantes, desumanas e cruéis" no país é extensa, embora a própria Anistia reconheça alguns avanços.
O relatório se refere a 2009, mas não escaparam aos representantes da ONG em visita ao Brasil dois "casos" emblemáticos já deste ano.
Primeiro, os dois motoboys espancados até a morte por PMs paulistas, com intervalo de um mês entre um e outro. Segundo, o julgamento "histórico" de abril, quando o STF decidiu por 7 a 2 que não lhe caberia alterar a Lei da Anistia a fim de possibilitar o julgamento dos que torturaram na ditadura.
Na ocasião, Carlos Ayres Britto (derrotado ao lado de Lewandowski) argumentou que, diante do "monstro" que é o torturador, "não se pode ter condescendência". O Brasil, no entanto, tem -e muita.
O colunista Marcos Nobre foi bem ao ponto: "O STF manteve em vigência uma lei sem examinar de fato se ela é compatível com a Constituição. É verdade que seria um exercício de ginástica intelectual digno de medalha conciliar Estado democrático de Direito e tortura".
O fato é que a repercussão da decisão do STF foi escassa, como se ali estivesse em jogo apenas a dor pretérita de algumas poucas famílias destroçadas, e não a nossa capacidade de contemporizar diante do intolerável -ontem como hoje.
Os alertas da Anistia também já não comovem como antes. O Brasil está na moda. E falar de direitos humanos ficou incrivelmente velho.

Texto de Fernando de Barros e Silva, na Folha de São Paulo, de 28 de maio de 2010.

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